Podemos comemorar o fim do roustainguismo na FEB?

jbrNesse dia 10 de agosto, a Federação Espírita Brasileira retirou de seu estatuto a referência explícita a Roustaing. Muitos espíritas comemoraram, muitos acham que esse tema do roustainguismo é irrelevante e outros tantos nem sabem quem foi Roustaing.

Por isso, resolvi escrever um histórico resumido, didático, acompanhado de algumas reflexões.

Para quem não sabe, Jean Baptiste Roustaing era um advogado de Bordeaux, contemporâneo de Kardec, que se auto investiu de uma missão espiritual, de propor a parte religiosa do espiritismo, publicando quatro extensos volumes do evangelho, supostamente reescrito pelos evangelistas do Novo Testamento. A médium era uma só, o filtro era só de Roustaing e de certa maneira poderia tornar dispensável o Evangelho Segundo o Espiritismo de Kardec. Tratava-se de um texto indigesto, excessivamente rebuscado, obscuro – denotando segundo o Livro dos Médiuns, a escrita de espíritos mistificadores –  e apontava diversos retrocessos em relação à filosofia racional, evolucionista, clara e objetiva, como foi proposta por Kardec.

Uma das teses mais importantes desta obra era a ideia de que Jesus não havia reencarnado em carne e osso e teria sido um agênere, o que faria dele um impostor, pois um corpo fluídico não sofre, não morre e toda a vida de Jesus teria sido uma fraude. Mas a tese agradava os remanescentes do catolicismo tradicional porque preservava a ideia da virgindade de Maria, que teria tido uma gravidez psicológica. Noutra diferença gritante com o espiritismo de Kardec, que é evolucionista e pedagógico, os Quatro Evangelhos de Roustaing apresentam ideias de queda e punição.

O autor enviou a obra para Kardec e este fez breves e prudentes comentários na Revista Espírita, evitando uma adesão ou uma rejeição imediata. Entretanto, em sua última obra A Gênese e os Milagres Segundo o Espiritismo, Kardec desmonta a tese do corpo fluídico de Jesus, embora sem fazer alusão ao nome de Roustaing.

Essa é a primeira parte da história. Entre a última edição (quarta) da Gênese, publicada pessoalmente por Kardec, e a quinta edição que veio à luz 3 anos depois da morte do autor, houve mudanças, algumas das quais atenuavam, mas não afastavam as críticas ao corpo fluídico de Jesus.

Recentemente, pesquisas históricas fartamente documentadas, sobretudo publicadas no livro O Legado de Kardec, de Simone Privato, demonstram que a Gênese da quinta edição foi propositadamente adulterada depois da morte do autor e que o roustainguismo tomou de assalto o movimento espírita francês. O grande vilão da história, e infelizmente não restam dúvidas a respeito, foi Pierre Gaetan Leymarie, que por motivos financeiros acabou loteando o legado de Kardec entre facções diversas. Um financiador milionário que apoiava Leymarie era o herdeiro do roustainguismo francês. A resistência a esses desvios ficou por conta de Amélie Boudet, Leon Denis, Gabriel Delanne, entre outros.

Em que momento, o roustainguismo encontra guarida no nascente movimento espírita brasileiro ainda é algo a ser rastreado com maior precisão. Mas é fato que o próprio Bezerra de Menezes ficou seduzido por esta mistificação. Não sabemos em que altura ele se converteu a essa corrente pois, relembrando os artigos que escrevia no jornal O País, como irmão Max, ele dava notas de ser uma pessoa racional e coerente com Kardec.

O caso, porém, é que o roustainguismo se enquistou na FEB como um tumor, provocando até hoje oposições dos que se consideram fieis a Kardec.

No famoso e questionável livro Brasil, Coração do Mundo e Pátria do Evangelho, psicografado por um Chico jovem e tutelado pela FEB e por um Humberto de Campos espírito, recém desencarnado – cujo envolvimento com o espiritismo e com questões espirituais tinha sido nulo quando encarnado – o final é uma ode à hegemonia espiritual do Brasil no mundo, centralizada na FEB. E mais, Kardec e Roustaing são mencionados como os grandes apóstolos do espiritismo, lado a lado. E, diga-se de passagem, este livro também consta no estatuto da FEB como fonte de revelação inquestionável, que coloca a instituição como detentora central e missionária da herança espírita no mundo. E este item, relativo ao Brasil, Coração do Mundo Pátria do Evangelho, não foi retirado do estatuto da FEB, apesar das numerosas críticas que o movimento espírita tem feito ao caráter ufanista, totalitário e místico da obra.

Aí levantam-se questões que muitos se fazem. Para que combater o roustainguismo, para que debater algo tão distante do movimento espírita, onde a maioria nunca ouviu falar de Roustaing? Não existe a liberdade de cada um de acreditar no que quiser? Seria o debate em torno do roustainguismo um purismo de kardecistas fanáticos? É evidente que cada um pode aceitar a ideia que quiser. Mas o problema é quando uma instituição se diz kardecista, mas na verdade é roustainguista. E o problema ainda é maior quando essa instituição se arroga o status de representante oficial do espiritismo, negando a pluralidade de visões espíritas fora de sua tutela.

A resposta é que embora o roustainguismo não seja tão explícito e visível aos olhos da maioria, ele influenciou profundamente a mentalidade espírita brasileira ou, pelo menos, veio bem a calhar com o nosso conservadorismo católico tradicional. A primeira má influência está na aceitação acrítica de textos mediúnicos prolixos e místicos até hoje pelo movimento, com o apoio ou não da FEB, já que a própria obra de Roustaing se autoproclama pomposamente como “revelação da revelação” e não passou por nenhuma avaliação crítica e nem pelo critério de Kardec da universalidade do ensino dos espíritos. Este critério hoje pode não ser mais aplicável pela presença das redes sociais e pela impossibilidade de que diferentes médiuns não tenham se influenciado mutuamente. Mas na época de Kardec esse método se revelou eficaz em seus propósitos. No Brasil, desenvolveu-se a cultura protegida pela FEB de médiuns eleitos e infalíveis, cuja obra jamais passa por uma avaliação crítica e que passam a pontificar em nome do espiritismo.

Outra influência negativa e invisível do roustainguismo é um discurso excessivamente religioso, muito punitivo e pouco afeito às questões sociais. Ao contrário de Kardec e dos espíritos que com ele trabalhavam, que discutiam questões como igualdade de gênero, fome e pobreza, organizações sociais deficitárias e injustas, liberdade de pensamento e expressão, tolerância religiosa, entre outros temas que aparecem majoritariamente no Livro dos Espíritos,o movimento espírita tutelado pela FEB jamais se pronuncia sobre qualquer tema relativo às questões palpitantes e urgentes da sociedade brasileira. Quando se pronuncia é apenas para insistente e simploriamente criminalizar as mulheres no aborto ou se manifestar de forma implícita ou explícita a favor de posicionamentos nitidamente conservadores.

Além disso, o grande mote da FEB que é a sua autoproclamada missão de unificar o movimento espírita, é sempre aplicado de maneira hegemônica, sem diálogo com o contraditório. O Pacto Áureo, na década de 40, que teria sido supostamente um marco na unificação do espiritismo brasileiro, nada mais foi do que uma estratégia de submissão de todas as federativas à liderança da FEB. O movimento febiano não se senta para dialogar por exemplo com a CEPA (Confederação Espírita Panamericana) ou com a ABPE (Associação Brasileira de Pedagogia Espírita) apenas para citar duas instituições fortemente kardecistas. A estratégia do não diálogo é o boicote silencioso daqueles que pensam diferente.

Por tudo isso, podemos comemorar apenas timidamente a exclusão do nome de Roustaing do estatuto da FEB. Demonstra já uma pequena sensibilidade às críticas dos kardecistas. Vale dizer que este processo de retirada do nome de Roustaing começou com os dois únicos não roustainguistas e paulistas que dirigiram a FEB, Nestor Mazzoti e Cesar Perri. Quando eles tentaram mudar o estatuto neste sentido foram barrados por uma ação judicial pelo ultra roustainguista Luciano do Anjos. Ao que parece foi a resolução desta pendência jurídica que permitiu a retirada do nome de Roustaing do estatuto neste 10 de agosto de 2019. Mas para que a FEB seja uma instituição aberta ao diálogo, sensível às questões que afligem o mundo contemporâneo e que retome a linguagem racional, científica e crítica, que era a de Kardec, ainda há muitos passos a serem dados. Esperemos o futuro. Enquanto isso, há muitos espíritas progressistas trabalhando por uma visão kardecista mais livre e mais contemporânea.

 

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