Na obra Minha Vida, publicada em 1896, o escritor Anton Tchekhov realiza profunda crítica à sociedade russa feudal de seu tempo, mas que continua válida e ainda tem muito a nos dizer.
Por meio de uma intensa narrativa psicológica, o autor vai rasgando a aura de sacralidade em torno de certos valores sociais e morais, e chega a uma conclusão fundamental: a sociedade é um imenso teatro, onde o que realmente importa é responder às expectativas que cada um tem do outro e cumprir os papeis sociais pré-definidos do que propriamente ir em busca daquilo que efetivamente se deseja ou do que é concebido pela pessoa como relevante.
A partir de duas relações familiares consideradas muito importantes afetivamente – com o pai e com a esposa – a obra revela o imenso esforço do protagonista, Missail Poloznev, em ser ele mesmo. Porém, para alcançar esse objetivo, ele precisa vencer mais do que tradições e hierarquias sociais. Ele deve superar um paradoxo: ser fiel ao seu mundo interno e ser capaz de se autodeterminar exige o seu “fracasso” perante o mundo exterior.
A mensagem final é que, num mundo de aparências e de atuações sociais teatralizadas, viver de modo autêntico é um dificílimo e doloroso parto existencial, principalmente quando essa autenticidade colide com o que a sociedade considera o mais elevado. Em termos sociológicos, é o que Zygmunt Bauman, em O mal-estar da pós-modernidade, quer dizer ao afirmar que a sociedade funciona como uma fábrica de significados de vida, que fornece os elementos materiais, morais e ideológicos para que as vidas individuais possam ter um sentido, e não serem vividas apenas como um conjunto de atos aleatórios.
De família nobre, e com um pai que era o arquiteto da cidade, Missail afronta os significados de vida hegemônicos da sociedade de seu tempo e decide ser pintor de paredes, uma profissão braçal e, logicamente, reservada às classes subalternas. Em troca, recebe o desprezo de seu pai, incapaz de respeitar a decisão do filho, pois ainda preso à necessidade de atuar conforme as expectativas sociais quanto ao cumprimento de seu papel de bom pai.
O mesmo ocorre com Macha, sua esposa, a qual, apesar de partilhar as convicções de Missail, não quer ir às últimas consequências. Ao contrário, o que ela quer mesmo é ser protagonista numa sociedade esquizofrênica, cega quanto às suas próprias mazelas e sem condições de realizar julgamentos éticos com profundidade.
Mas não é só isso. Ao fazer com que o personagem Missail conviva entre as classes ricas e pobres, Tchekhov desnuda as contradições e hipocrisias de cada uma, que, no fundo, revelam desvios morais puramente humanos, mas agravados pelos modos de organização social. Dentre outros, ele percebe como o uso de álcool pelos camponeses e os furtos contra os patrões eram altamente condenados pela nobreza, conquanto esta achasse válida a sua bebedeira, o recebimento de propinas e as apropriações e roubos praticados contra os mais pobres. Também vê como era infundado o fato de seu pai, um arquiteto medíocre, achar-se superior aos demais pelo simples fato de exercer uma atividade intelectual.
O parto existencial de sua irmã, Kleopatra, é ainda mais doloroso. Sua saída do teatro social se dá de supetão, inadvertidamente, justo quando ela tentava interpretar, simbolicamente e sem êxito, uma peça teatral. Novamente, a possibilidade de alguém ser ela mesma, de se descobrir e se autoafirmar se dá no paradoxo do fracasso ou da inabilidade em responder adequadamente aos anseios e às expectativas sociais.
É lógico que, para quem consegue esse rompimento, a coisa se inverte: sucesso é conseguir não mais responder aos padrões, tradições e hierarquias sociais que não se coadunem com seu mundo íntimo, e fracasso é permanecer nas teias da atuação .
Obviamente, a obra de Tchekhov ainda é bem atual e próxima da crítica social espírita. Se as sociedades de todos os tempos e lugares têm fornecido significados de vida para que as pessoas possam dar um direcionamento às suas vidas, isso não quer dizer que tais significados sejam bons, e nem que permitam que os seres humanos possam realizar sua humanidade de modo pleno. Ao contrário, a tendência de todas as sociedades humanas, além de impedir o amplo despertar das potencialidades humanas, é criar uma ordem social que torne o acesso a esses significados de vida um privilégio de uma minoria.
E, em nossa presente sociedade, orientada para o consumo, onde competir e acumular tem sido compensadores emocionais fugidios e superficiais de uma humanidade alienada de si mesma, os significados de vida existentes e hegemônicos, de perceber que se realiza algo, de “vencer na vida”, de alcançar a plenitude e de sentir que a vida possui densidade nunca foram tão vazios e distanciados das verdadeiras necessidades morais, existenciais, espirituais e afetivas, que os seres humanos carregam consigo.
E, por isso, talvez, o arquétipo de Missail Poloznev nunca tenha sido tão pertinente, na necessidade de uma revisão profunda sobre até que ponto temos sido apenas atores, que simplesmente respondem às expectativas que os relacionamentos sociais nos impõem, ou se estamos conseguindo ser aquilo que efetivamente somos, na difícil equação entre compreender-se, de um lado, como espírito imortal, mas, de outro, vivendo momentaneamente uma história com começo, meio e fim, com todas as suas lutas e contingências.
Nessa revisão profunda, alguém poderá dizer que os rompimentos sociais e afetivos de Missail são muito radicais, e que há possibilidade de buscar a autenticidade sem rupturas tão drásticas. Pode ser. Mas isso já é uma questão de autoconhecimento e de biografia pessoal…
Raphael Faé
OBS: esse texto surgiu depois do debate da referida obra no “Grupo de Leitura”, que se reúne mensalmente, em Vitória/ES, para discutir a boa literatura mundial e brasileira. Para mais detalhes sobre o grupo, clique aqui (Jornal Crítica Espírita de junho 2016, seção “Atualidades”)
Análise e texto excelentes. Muito pertinente neste momento em que a sociedade baseada apenas em ter, “vencer”, parecer, competir, consumir, em sua lógica materialista, vem revelando rachaduras enormes em sua estrutura.
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Nada mais atual do que denunciar e alertar sobre as fábricas de subjetividades em que há muito vivemos.
Excelente, pertinente.
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