Desventuras na educação moral: com os jovens e com os espíritos

Konrad_Grob_Der_Maler_auf_der_Studienreise_1872.jpgImagine uma criança da favela que passou o dia todo longe da mãe, na creche. A criança tem um pai ausente. Quando a mãe leva o filho para casa, à noite, lhe entrega um pacote de bolacha, e a criancinha de 4 anos fica toda feliz. Chega uma  vizinha com sua filha visitando nossa primeira mãe, que, para ensinar moral para sua criança, quebra o pacote de bolacha ao meio: “Você tem que aprender a dividir!”

Outra cena. Há um rígido acordo na casa: Quem não lava seu prato após a janta, não almoça enquanto não cumprir a tarefa. Assim, mãe e filho ou pai e filho estão constantemente almoçando separados, porque o último não lavou seu prato. A gritaria e a separação se sucedem aos pratos não lavados.   

Terceira cena: Na verdade, diversas cenas que se repetem nas reuniões mediúnicas: Espíritos de civilizações passadas vem acusar pessoas de terem “misturado raças”; antigos companheiros de manobras políticas cobrando aqueles que “os traíram”; ex- maridos inconformados com mulheres que tem parceiros diferentes nessa encarnação; indignados diversos com pessoas “más” que levam uma vida “boa”. Em alguns casos, esses espíritos relutam em pensar no amor, descrevem-no como “um sentimentalismo idiota”. Quando a lembrança de tempos passados, de dias melhores vêm à tona, surgem invariavelmente os sentimentos de vergonha e fatalismo: “Agora não posso voltar atrás; não quero que aqueles que me amam me vejam nesse estado”.

Ainda nessa cena, vamos falar das pessoas que participam da reunião mediúnica: Elas se posicionam de forma superior aos espíritos que recebem. Fixam sua argumentação nos erros que o espírito cometeu, criticam a suposta mesquinhez de suas emoções, argumentam o quanto o poder do espírito mal intencionado é ínfimo perante “hostes celestes” de espíritos superiores. No fundo, parte-se de uma perspectiva emocional de…punição. Muitas vezes, não há empatia, nem se acolhe o espírito numa perspectiva racional e emocional mais serena, menos fatalista.

Esses casos, de maneira diferente, desvelam o fato de que muitas vezes tendemos a pensar que educar moralmente, seja uma criança, seja um espírito, é estabelecer regras e zelar rigidamente pelo seu cumprimento disciplinado, encarando as afrontas dos educandos como tragédias e disputa por poder; é julgar o comportamento do outro de forma infelxível. A dimensão da afetividade está geralmente escondida de nossas visões sobre moralidade, e isso fica explícito nos casos expostos acima.

Na primeira cena (narrada pelo professor André Andrade Pereira no curso de pós graduação em Pedagogia Espírita)  que experiência de dividir tem a criança? A frustração da separação de seu objeto de amor – a mãe – não se revela ainda mais terrível quando seu único presente é partido ao meio? É errado a criança chorar por isso?

Na segunda cena, comentada por Claudia Mota  e Maurício Zanolini no programa Educação para Todos, pergunta-se o que é mais importante, lavar os pratos ou construir uma vivência comunitária na família? Será mais frutífero, a longo prazo, se o adolescente odiar os gritos dos pais, não entrar nesses jogos de barganha, ou se desenvolver uma empatia tal por eles que se sinta solicitado por sua consciência a ajudar com a louça? Que tal dizer “Você esqueceu de lavar o prato, lavei pra você, vamos almoçar juntos, e você cuida da louça depois”, e realmente fazer do ato de almoçar juntos o momento de construção desse projeto, que é a família? Uma pessoa sem empatia não será talvez, alguém imerso no egocentrismo de seus próprios conflitos, tédios, sofrimentos e escapismos?

As tendências atuais da Psicologia Moral já ultrapassaram a visão da moralidade focada unicamente na capacidade racional da justiça, e percebem que existe uma significativa relação entre estados emocionais, os raciocínios morais e a organização do pensamento das pessoas  quando elas precisam resolver conflitos. Em outras palavras, os sentimentos nos conflitos morais podem ser decisivos na escolha de caminhos.

Embora algumas das discussões da psicologia enfoquem os sentimentos em diferentes situações da vida, os teóricos da psicologia moral também veem a importância de emoções e sentimentos no desenvolvimento moral de longo prazo do ser humano. De certa forma, há uma aproximação entre essas tendências e a teoria de um clássico da educação, Pestalozzi, de quem Kardec se intitulava discípulo, na juventude.

Para o educador suíço, toda criança nasce em uma base instintiva, o estado natural, que se choca com as normas sociais. Desse choque origina-se o estado social, que é apenas a aceitação das normas sociais, evitando punições e buscando recompensas. O estado social de Pestalozzi se aproxima da visão dos níveis medianos de moralidade de Kohlberg: Para esses teóricos, estados do tipo evitar punição e buscar recompensa, sendo relativamente úteis para a manutenção da ordem social, não são o ápice do desenvolvimento moral do indivíduo e não alcançam níveis de princípios universais – ou universalmente desejáveis.

O estado moral, segundo Pestalozzi , pode surgir da dialética da relação entre ser humano e sociedade  – base instintiva em conflito com as restrições e injustiças sociais – tendo como força motriz o amor. Assim, ser amado e amar – de forma raciocinada, dirá o ainda iluminista mestre de Kardec  – são os impulsos do desenvolvimento da moralidade.

Não estamos tão distantes da formulação de Piaget, segundo a qual a passagem do estado de heteronomia para autonomia da criança se realiza pela consolidação de um sentimento (!) de respeito – que é um misto de amor e medo, como em geral os psicólogos entendem – pelas regras, e pelo processo de diminuição do egocentrismo. Mesmo no estado de  heteronomia da criança, Piaget indica que o respeito – novamente, misto de amor e medo, seja de punição física, seja de perder o amor – pelo adulto é a base do respeito às normas. É por isso que uma pessoa totalmente humilhada pode desenvolver um comportamento de total desrespeito, porque perdeu todo o amor e todo o medo, pois já sofreu o pior.

Como diminuir o egocentrismo? Para Piaget, superando um ambiente de heteronomia, coação, respeito unilateral, relações assimétricas, e vivenciando experiências de autonomia, cooperação,respeito mútuo, relações entre iguais. Para Pestalozzi, vivenciando o sentimento de ser amado, a reflexão sobre esse fato, e o convite ao altruísmo.

O amor é um estado de sentimento e de consciência em que ocorre uma espécie de rompimento das fronteiras entre os meus interesses e os do outro, e, nessa situação, agimos de forma altruísta até contra as sanções sociais, sem que isso nos seja uma imposição fria e dura de uma consciência só racional. Assim diria Buda:

“Como uma mãe arriscaria sua vida

para proteger seu filho, seu único filho,

da mesma forma, com relação a todos os seres

cultive um coração sem limites”*

Pestalozzi desenvolve a teoria dos três estados como um modelo de entendimento do desenvolvimento da criança, do desenvolvimento moral humano, do devir da história, e também refere-se a ele como três instâncias da psique humana (por isso alguns intérpretes investigam suas aproximações com Freud). Na contramão da filosofia romântica alemã, o educador suíço reforça uma visão totalmente dessacralizada do Estado e das normas sociais, enxergando-os como mecanismos de repressão dos instintos, que pouco dizem respeito ao engajamento do ser no desenvolvimento moral autônomo.

 No caso das reuniões mediúnicas, vê-se  justamente o que Pestalozzi entende como estado social: Espíritos usando argumentos e lógicas sociais discutíveis para defender sua sede instintiva de dominar, possuir, destruir. “Propriedade, lucro, profissão, autoridade, leis são meios artificiais para satisfazer minha natureza animal pela escassez de liberdade animal”, afirma o educador. Mas o encontro com um amor genuíno é mais apelativo que a vingança, mais significativo que discursos moralizantes.

Pestalozzi  baseia-se  em uma visão de uma semente essencial de bondade no ser humano a ser desenvolvida, seguindo a trilha de Rousseau na visão antropológica que será a base da valorização da liberdade que caracteriza o espiritismo: O ser humano tem a liberdade de fazer qualquer coisa, exceto de deixar de ser ele mesmo, um ser com germes morais que só encontra felicidade no bem. Os inculcamentos sociais podem inclusive abafar esses germes, tensionando seu desenvolvimento moral. Uma tese metafísica, que não cabe nas visões materialistas do ser humano, mas de um otimismo antropológico que nos impulsiona e nos faz entrever as melhores utopias: “Quanto mais entro em mim, mais me consulto, mais eu leio essas palavras escritas na minha alma: sê justo e será feliz”, diz Rousseau, que teve grande influência nas investigações pestalozzianas.

Obrigar ou chantagear as crianças a dividirem suas bolachas ou colocar a regra da louça à frente do estar em família pode despertar exatamente opostos dos sentimentos  de amor, respeito,altruísmo. No mesmo sentido, as leis e normas sociais, com suas recompensas e punições, não têm sido muito mais do que construídas ao longo da história baseadas predominantemente nas disputas de classe, legitimando largamente jogos imorais de poder, sem impedir as atrocidades humanas cujos resultados vemos também nos ciclos das encarnações. A empatia e o amor – incondicional, mas que convida à transcendência – são elementos que médiuns, pessoas que conversam com os espíritos, pais e educadores precisam primordialmente exercitar para ajudar no desenvolvimento moral de alguém.

Nós podemos nos encontrar em situações de heteronomia, de punições ou recompensas sociais, como obrigar uma criança a tomar um remédio, impedir que um aluno bata em outro ou deter alguém que esteja oferecendo risco à sociedade, mas essa relação não será suficiente para o desenvolvimento moral de ninguém. Tenha-se em conta o caso de um jovem que ganhava cem reais por cada nota 10 que tirava na escola. Seus irmãos, que não tinham as mesmas notas, se enxergavam com base nessa comparação. Com suas recompensas, o aluno bem sucedido poderia usar a lógica mercadológica e contratar o irmão caçula para lavar sua louça, mas seu desfecho, pior ou melhor, foi outro: Sua primeira compra foi um narguilé, e o garoto acabou viciado em outras drogas. A psique humana é complexa, é social e individual, é consciente e inconsciente, com sede de sentido e de afeto. Não pode ser reduzida a um ratinho behaviorista.

Litza Amorim

Para saber mais:

*Buda. Karaniya Metta Sutta. Traduzido do Páli por Thanissaro Bhikkhu.Na coleção: INCONTRI, Dora e BIGHETO, Alessandro. Todos os jeitos de crer, vol.3,  Editora Ática.

INCONTRI, Dora. Pestalozzi: educação e ética. São Paulo: Scipione, 2006.

ARANTES, V. A. ; ARAÚJO, Ulisses Ferreira de ; PUIG, J. M.Educação e valores: Pontos e Contrapontos. São Paulo: Summus., 2007.

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2 respostas para Desventuras na educação moral: com os jovens e com os espíritos

  1. Valeria disse:

    Maravilhosa reflexão

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  2. A educação é o grande desafio da humanidade, enxergar as cenas corriqueiras do ambiente doméstico de uma maneira ampliada vendo a dimensão humana e espiritual está para lá de fórmulas mágicas com garantia de sucesso procuradas por pais e educadores insanos!

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