
Em 2010 estreou o filme – As Cartas Psicografadas por Chico Xavier – que relatava histórias de pais e mães que procuravam Chico em busca de cartas de seus filhos mortos. Parte essencial da história de Francisco Cândido Xavier como médium espírita, as cartas solidificaram ideias a respeito do que é e para que serve o espiritismo, além de estabelecer um modelo para o exercício da mediunidade.
Muitas dessas ideias se chocam com o espiritismo que Allan Kardec formulou em diálogo com os espíritos na segunda metade do século XIX. Uma delas é a ideia que está contida na frase do próprio Chico de que “o telefone só toca de lá pra cá”. É compreensível que o médium mais requisitado do país optasse por explicar o fenômeno das cartas como algo alheio a sua intenção enquanto médium e a intenção dos pais e mães enlutados que formavam filas enormes em seu centro na cidade de Uberaba.
Mas para Kardec, evocar os espíritos (chamá-los pelo nome para uma conversa), foi a principal ferramenta de trabalho na construção da mensagem espírita. Mais do que isso, quanto maior a relação de familiaridade com o espírito desencarnado, mais confiável é a evocação.
Por que, então, as famílias não evocam seus próprios filhos e entes queridos que partiram? Porque essa maneira de estabelecer o diálogo entre vivos e mortos passou a ser classificada como perigosa pelo espiritismo institucional hegemônico brasileiro, aumentando a dependência das pessoas que buscam mensagens à figura do “grande médium”, que passa a ser classificado como “mais evoluído” e inquestionável perante aqueles que o seguem.
Outra dessas ideias que, apesar de sutil, tem grande impacto na compreensão do espiritismo no Brasil, é o foco nas histórias dos indivíduos em detrimento de uma percepção coletiva a respeito da reencarnação e da comunicação entre vivos e mortos. Em 2011 a revista Istoé publicou uma reportagem intitulada – As mães de Chico. No texto são apresentadas entrevistas curtas com mães que vivenciaram a morte dos filhos e buscaram consolo nas cartas psicografadas.
O tom das histórias é de superação da dor e a matéria inclui a fala de especialistas em luto. Um detalhe importante é o comentário de alguém próximo a Chico, explicando que Emmanuel (o guia espiritual do médium mineiro), fazia uma triagem para que Chico psicografasse mensagens que sugerissem para as mães que elas se dedicassem a ajudar outras pessoas. Podemos entender isso como um conselho terapêutico, mas o fato é que “ajudar outras pessoas” para a maioria dos espíritas é apenas assistencialismo.
Aqui algumas ideias ficam implícitas. Uma delas é a de que estes espíritos que se manifestaram através do médium e suas famílias que receberam as cartas, o fizeram por uma espécie de “merecimento”, que também pode ser compreendido como um sinal de uma maior evolução espiritual em relação às pessoas que, embora possam ter vivido o mesmo drama, não escreveram nem receberam cartas. Outra ideia invisível é a condição de vida e de morte dos envolvidos. Os mortos são jovens promissores, com um futuro promissor pela frente, cujas vidas foram ceifadas por acidentes trágicos. A única história que se aproxima de uma leitura mais coletiva é a do jovem morto durante um assalto.
Mas o que seria uma percepção coletiva a respeito da reencarnação e da comunicação entre vivos e mortos? Pelos dados da UNICEF, entre 2016 e 2020, 35 mil crianças e adolescentes de até 19 anos foram mortos de forma violenta no Brasil. Temos por ano, portanto, algo em torno de 7 mil mães que perdem seus filhos de forma dilacerante. Onde estão as vozes desses espíritos? Onde o consolo para suas mães? Mais ainda, onde está a indignação diante de uma sociabilidade tão violenta e desigual? Os grupos espíritas que tem a ferramenta da mediunidade como um dos seus pilares, se limitam a levar sopa e pão para moradores de rua. O Espiritismo é uma filosofia igualitária e otimista, que entende que o futuro será a construção que fizermos no presente, individual e coletivamente. Precisamos repensar o nosso papel como espíritas.
Nosso grupo mediúnico que faz um trabalho em parceria com um grupo espiritual de jovens, vítimas da violência das grandes cidades, dá voz a essas histórias que nos contam uma outra verdade. Vejam três textos psicografados numa reunião cujo tema era a maternidade:
Carta para minha mãe 1:
Oh mãe, me desculpe
Eu não ter beijado você antes de sair
Não sabia que não ia voltar…
Oh mãe, me desculpe
Não ter cuidado dos pratos
Do lixo, da roupa
Eu só queria brincar…
Oh mãe, desculpe eu ter te cobrado
A presença que você só podia da casa da sua patroa
Eu queria colo…
Oh mãe, desculpa eu ter te feito chorar
Por ter te dado o desgosto de me ver ali jogado
Você lutou tanto
Só queria fazer parte da turma…
Oh mãe, desculpe não ir mais vezes lá em casa
Te consolar quando vocês
Chora por mim
O nó ainda está na garganta
Só queria te abraçar e pedir perdão
(Médium C. M. – 17/05/2023)
Carta para minha mãe 2:
Também quero escrever para minha mãe
Dizer pra ela que meu amor tem gosto amargo
Mistura raiva e revolta
Dessa vida que te tirou de perto de nós
Desse pai que não queria saber de nós
Dessa sociedade que não quer saber de nós.
Queria ter te dado uma vida boa
Uma casa grande
Comida na mesa
E uma chinela macia
pra você calçar no fim do dia e sentar pra ver a novela
Não consegui…
Me dói ver você explorada. Largada, sugada,
Estou caçando um jeito de fazer parte de uma mudança
Não é justo, não é justo…
(Médium C. M. – 17/05/2023)
Carta para minha mãe 3:
Minha mãe me dizia
Que ia trabalhar para me dar
Um brinquedo novo
Uma comida boa
Uma cama quente
Eu trocaria tudo pra ter ela
Perto de mim
Tipo aquelas mães de novela
Que brinca e conversa com os filhos
Não deu
Sei que não foi culpa dela
Nem minha.
Espero que as mães tenham mais direitos
Para os filhos terem direitos também.
(Médium C. M. – 17/05/2023)
A imagem que ilustra esse texto é uma colagem feita a partir dos desenhos produzidos por uma médium do nosso grupo que, à distância e sem saber nada sobre o que estamos falando, se conecta mentalmente conosco enquanto acontece a reunião mediúnica. As imagens que ela produz dialogam com o tema da reunião e reforçam a veracidade daquilo que as mensagens nos entregam.
Nesse dia tivemos as flores e a imagem do pezinho de uma criança, que são presentes tradicionais do Dia das Mães, a Igreja da Candelária (falamos sobre as mães da Candelária durante a reunião), e um retrato franciscano. A colagem e as cores são nossas, configurando assim uma parceria entre os de lá e os de cá.
As produções mediúnicas do nosso grupo em parceria com esses jovens estão no Instagram. Nos sigam por lá:
https://www.instagram.com/slam.mediunico/
Por aqui, no Blog da ABPE, continuaremos divulgando o andamento desse trabalho e seus desdobramentos. Segundo algumas mensagens que recebemos, esse tipo de trabalho está sendo aberto em outras frentes, então logo teremos mais novidades de outros cantos.
Para ver os textos anteriores desse projeto clique no link abaixo:
https://blogabpe.org/category/slam-mediunico/