A viagem de Jesus e Pedro entre as cidades de Cafarnaum e Magdala prossegue. Nela, Pedro, tão temeroso em se defrontar com inimigos externos, vai se deparando com os internos e mostrando os conflitos íntimos pelos quais passam todas as pessoas, principalmente as que percebem ser preciso reavaliar condutas, pensamentos e conceitos. Neste terceiro artigo da série (baseada no capítulo 31 do livro Luz Acima), quem se apresenta para ser colocada no centro da discussão é a dureza.
Nossa dupla de protagonistas encontra um vendedor de perfumes chamado Teofrasto. Ele narra a ambos que um homem chamado Zeconias, leproso curado por Jesus, estava em Jerusalém, onde acusava o Cristo se valendo de falsos argumentos.
Pedro, ao saber do ocorrido, chamou Zeconias de ingrato, enumerou os benefícios que Jesus lhe prestara e se demorou em longas e amargas palavras, amaldiçoando o nome do ex-hanseniano.
O Cristo, então, pergunta a Pedro quantas vezes é necessário perdoar o inimigo. Em tom humilde, o pescador responde: – Até setenta vezes sete. – Mantendo-se sempre sereno, o Mestre arremata: – A dureza é um carrasco da alma.
Ser duro de coração; atire a primeira pedra quem nunca o foi! Aliás, o episódio da mulher adúltera, que me salta à mente no momento em que escrevo estas linhas, é um bom exemplo de como o coração humano pode ser duro, incapaz de enxergar na pessoa condenada alguém repleto de carências e altos e baixos, assim como nós. À época, a secura de coração de uma sociedade altamente machista foi desnuda pelo simples enunciar do Cristo: – Aquele que estiver sem pecado, atire a primeira pedra. Naquele momento sublime, os machos empedernidos foram desnudados em suas mazelas e encharcados por uma súbita tomada de consciência, que os fez ir embora, um a um, largando as pedras pelo chão.
Quando Jesus ensina que devemos perdoar até setenta vezes sete a cada ofensa (o que totaliza 490 vezes), está, de fato, dizendo que devemos perdoar indefinidamente, ou seja, passar por cima dos eventuais detratores, perseguidores, traidores e afins e tocarmos o barco da nossa vida. Sei que é um movimento difícil. No entanto, a origem da palavra perdoar nos dá as diretrizes.
Segundo o site Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, o prefixo “per”, tem vários significados. Entre eles, “muito”. Por exemplo, se algo está perfeito, significa que foi muito feito, ou seja, feito à exaustão, de forma intensa, nos mínimos detalhes. Por isso, está perfeito. Da mesma forma, percorrer significa correr milimetricamente, passar em revista com muito cuidado para que nenhum detalhe seja perdido. Nessa toada, perdoar quer dizer doar intensamente, deixar para lá eventuais melindres e mágoas e fazer a nossa parte, deixando a dureza para quem quer ficar remoendo ressentimentos. Tal qual Jesus, que não se deteve na fala de Teofrasto e seguiu adiante, rumo ao objetivo que a viagem demandava.
A dureza, no entanto, me leva a abordar outros enfoques além do proposto pela história do Luz Acima. O que me leva a tanto é a quantidade de demonstrações de corações duros que grassam por aí. Leia-se falta de compaixão e de empatia. É por este caminho que irei.
Em maio de 2020, o cidadão americano negro George Floyd foi estrangulado por um policial branco, que o imobilizou e se ajoelhou em seu pescoço durante uma abordagem. O motivo: Floyd supostamente usara uma nota falsificada de 20 dólares em um supermercado.
As imagens de Floyd dizendo com dificuldade que não conseguia respirar e a insistência de Derek Chauvin (o policial) em mantê-lo sufocado ganharam o mundo, causaram vários protestos e culminaram na frase que, desde então, vem sendo utilizada em todos os casos de racismo: “Vidas negras importam”. Culminaram também na prisão e condenação de Chauvin e demais policiais envolvidos.
À época, uma conhecida de movimento espírita (branca, diga-se de passagem) publicou, numa rede social, que era um absurdo dizer que as vidas negras importavam porque, na opinião dela, todas as vidas importam. A dureza de coração leva ao congelamento do raciocínio e, por conseguinte, à visão turva da realidade e à ignorância. Essa mulher não percebeu que as pessoas que possuem um mínimo de empatia e compaixão não querem que as vidas negras valham mais que as demais. É óbvio que todas as vidas importam! O problema é que a vida dos nossos irmãos negros é tratada como se valesse menos. Como cantava Elza Soares, “A carne mais barata do mercado é a carne negra”. No entanto, para os que possuem o coração empedernindo, tudo não passa de mimimi.
Em janeiro de 2022, o Brasil se estarreceu com a morte do jovem congolês Moise Mugenyi, espancado por três homens na praia da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro (RJ), quando foi cobrar por duas diárias que não recebera do proprietário do quiosque onde trabalhara. Dias depois, na cidade de São Gonçalo, também no RJ, Durval Teófilo Filho foi morto na porta do condomínio em que residia porque um morador do mesmo local, branco e oficial da Marinha, pensou se tratar de um bandido. Tanto Moise quanto Durval eram negros, assim como inúmeros outros homens, mulheres e crianças que tombam quase diariamente, vítimas da truculência, do descaso, do preconceito e do desprezo secular que a sociedade brasileira mais bem aquinhoada tem pelos negros e pobres. Aí, quando esta população historicamente massacrada resolve se manifestar e se organizar, muitas pessoas alheias às suas dores evocam o mimimi. Da mesma forma, protestam contra as cotas raciais nas universidades e concursos públicos por crerem que tudo não passa de favorecimento, esmola eleitoreira, populismo etc. Se soubessem um pouco da história e das lutas do povo negro, pensariam de forma diferente. A dureza de coração, todavia, não permite.
Sobre estes e muitos casos que assolam a população negra no Brasil, o escritor Jeferson Tenório escreveu, em artigo publicado no site de notícias Universo On Line (UOL), que o racismo é um rizoma, ou seja, um caule que se alastra e multiplica de tal forma a ponto de nos adequarmos a ele sem nem percebermos, principalmente por se tratar de algo tão intrínseco no nosso meio social desde que nos entendemos por nação. Dessa forma, os brancos se acostumaram a ver os negros como uma raça e a enxergarem a si próprios como uma não raça. O povo preto, por sua vez, foi se habituando a seguir determinadas normas e condutas para não ser visto como suspeito ou ameaçador. Observa Jeferson: “Um homem negro não entra numa loja do mesmo modo que um homem branco entra. Porque, veja bem: já somos acusados apenas por sermos negros. A cor da pele sempre chega primeiro. A nossa luta cotidiana é provar que somos inocentes por crimes que não cometemos.” Eu acrescento: e por crimes que sequer irão cometer.
Por mais que os brancos se mobilizem, se indignem e ajudem os irmãos negros nessa luta, nunca irão sentir na pele, literalmente, o que é ser visto como suspeito, subalterno e equivalentes simplesmente por ser negro. Mas podemos sentir no coração e movermos céus e terras para mudar a mentalidade escravagista que tanto nos infelicita. Isso se chama empatia, o antônimo da dureza. Se algum branco que me lê duvida da força da empatia, basta imaginar como seria se fôssemos discriminados, perseguidos, agredidos, acusados e até mortos por sermos brancos.
Na faculdade de jornalismo, numa disciplina chamada teoria do jornalismo audiovisual, estudei sobre os vários fatores que transformam um acontecimento em notícia. Entre eles, a proximidade. Quanto mais próximo do público, mais noticiável é o fato. Por exemplo, um acidente de carro que mata cinco jovens brancos, classe média alta, que voltavam de uma festa numa badalada e bem frequentada casa noturna costuma ter muito mais apelo emocional e espaço nos noticiários do que outro acidente com cinco jovens negros da periferia, que morreram a bordo de um carro usado quando voltavam de um baile funk. Uma clara evidência de que não estamos habituados a nos comover com as tragédias que abatem negros e pobres. Ao mesmo tempo, um desastre ceifando as vidas dos brancos e bem nascidos nos comove, mesmo que não pertençamos ao universo deles. Como a empatia precisa ser mais bem exercida neste mundo ainda pautado por tanta exclusão!
Em O Livro dos Espíritos, na questão 487, Allan Kardec indaga que males humanos mais afligem os amigos espirituais. A resposta é cortante: “O vosso egoísmo e a dureza dos vossos corações.” Acrescentam, ainda, que os demais males decorrem dessa dupla lamentável. O que estamos esperando para ter um olhar mais compassivo, empático e ativo ante a luta do povo negro? Aliás, toda e qualquer luta contra o racismo e demais preconceitos nunca é desse ou daquele segmento social. É uma luta de todos! Empatia é isso!
Na história que está servindo de mote para esta série de artigos, Jesus assevera que a luta mais renhida tem de ser travada dentro de nós. É preciso, portanto, continuar lutando para neutralizar de vez esses inimigos internos, que tanto nos infelicitam. Não podemos parar de lutar, muito menos temer esse bom combate.
Marcelo Teixeira
BIBLIOGRAFIA:
- KARDEC, Allan – O livro dos espíritos, Federação Espírita Brasileira (FEB), 60ª edição, 1984, Brasília, DF.
- TENÓRIO, Jeferson – Caso Durval Teófilo: Nossa luta cotidiana é provar que somos inocentes. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/opiniao/coluna/2022/02/05/notas-sobre-o-odio-o-racismo-e-a-historia-de-uma-ferida-aberta
- Site Ciber dúvidas da língua portuguesa – https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/
- XAVIER, Francisco Cândido – Luz Acima, Federação Espírita Brasileira (FEB), 5ª edição, 1984, Brasília, DF.