Dando prosseguimento à análise dos inimigos que ‘assaltam’ o apóstolo Pedro durante viagem que ele empreendeu com Jesus de Cafarnaum a Magdala – capítulo 31 do livro “Luz acima”, ditado pelo espírito Irmão X e psicografado pelo médium mineiro Chico Xavier –, analisemos a cólera, o segundo inimigo a dar o ar da graça (ou desgraça, dependendo do ângulo de interpretação).
A cólera surge no caminho de Simão Pedro quando ele e o Mestre cruzam com um levita,[1] que recitava passagens da Torá[2] e se dirigiu a ambos de forma desrespeitosa. A reação do apóstolo foi se inchar de cólera e discutir asperamente com o religioso, que acabou fugindo, amedrontado.
O Cristo, até então em silêncio, lembra a Pedro que a primeira obrigação do homem que se candidata ao Reino é amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo, pergunta se esse dever fora observado no episódio em análise e alerta que a cólera é um perseguidor cruel.
Convém ressaltar, primeiramente, que amar ao próximo como a si mesmo costuma ser interpretado, a olho nu, de forma piegas. Muita gente crê que tal atitude significa sair pelas ruas cumprimentando todo mundo efusivamente e utilizando-se de palavreado meloso. No episódio com o apóstolo, esse amor possui várias facetas. Uma delas é ser sábio para não se encolerizar com quem nos trata de forma desrespeitosa e, ao mesmo tempo, saber dar uma resposta educada e diplomática. Algo que Pedro, em um de seus rompantes, não sabia fazer. Pelo visto, ele era dado a partir para a ignorância, assim como muitos de nós.
O item 9 do capítulo IX de O Evangelho segundo o Espiritismo, de Allan Kardec, elucida com muita propriedade fatos como o protagonizado por Pedro e o levita. Diz o texto, da autoria de um espírito protetor, que devido ao orgulho, temos o hábito infeliz de nos julgarmos melhores que os outros e, por conseguinte, não suportarmos uma comparação que venha a nos diminuir. Isso acontece porque o orgulho nos leva a crer que estamos muito acima dos outros, seja em posição social, intelecto etc. Ao sermos depreciados, como o levita fez com Jesus e Pedro, nos entregamos à cólera. Primeiramente expressa na forma de despeito pelo levita, a cólera explodiu na mais verdadeira acepção da palavra quando Pedro rebate o homem, que acaba fugindo, amedrontado. Afinal, o levita não esperava tamanha reação de quem ele julgava inferior. Não lhe restou alternativa a não ser bater em retirada.
O Evangelho Segundo o Espiritismo prossegue na análise e esclarece que nossos acessos de fúria e demência, se analisados à luz da razão, terão quase sempre, como motivo, o orgulho ferido. O autor vai adiante e mostra que, até as nossas impaciências e contrariedades cotidianas, que muitas vezes desaguam na cólera e nos fazem repelir a ponderação, têm como base a importância excessiva que damos a nós mesmos e nos fazem achar que todo mundo é obrigado a se dobrar às nossas vontades. Ao escrever estas linhas, me lembro, por exemplo, das vezes em que me irrito com a pessoa que demora no caixa eletrônico mais tempo do que acho que ela deveria. Como se ela fosse um obstáculo à minha vontade e não tivesse o mesmo direito que eu de realizar as operações financeiras no tempo que lhe for necessário.
Os dias atuais andam, aliás, bem inchados de cólera, tais qual Pedro. O machismo e a misoginia, por exemplo, não suportam ver a mulher tendo os mesmos direitos que o homem; muito menos, que ela tenha a ousadia de se sentir realizada sem uma presença masculina. Menos ainda quando ela diz não ao sujeito que a corteja ou assedia. Resultado: o macho, que foi acostumado a ser servido pelas mulheres e a jamais ser contrariado, parte para a ignorância, engrossando as tristes estatísticas de casos de agressão física e feminicídio e também se chafurdando nas péssimas vibrações da cólera, que ao longo do tempo, provocarão vários descompassos orgânicos.
Ao olharmos à volta, concluímos que estamos tão acostumados a nos embebedarmos de cólera e nem sempre nos damos conta do que ela está causando ao corpo social. Ela também se mostra quando homens negros são abordados de forma truculenta, seja dentro de um shopping center por terem sido tomados como ladrões ou nas ruas das comunidades onde residem. E também se mostra nas lamentáveis brigas entre torcidas organizadas, que se dirigem aos estádios com a intenção de partirem para a pancadaria. Faz-se presente, ainda, quando pessoas de classe média ou alta espezinham serviçais e trabalhadores como entregadores de comida, balconistas de padaria e afins. Tudo isso e muitos outros exemplos entristecedores porque parte-se do princípio de que somos melhores que o outro, o qual precisa ser depreciado por nós.
O ator brasileiro Marco Pigossi, em tocante depoimento à revista “Piauí”, falou sobre o fato de ser homossexual num meio profissional em que a imagem de galã viril precisa ser preservada e das agruras emocionais pelas quais passou até assumir publicamente o namoro com um cineasta italiano. No texto, a parte que mais me sensibilizou foi a que em que ele narra o fato de o pai ter votado no candidato homofóbico à Presidência da República e que acabou vencendo as eleições, em 2018. Relata Pigossi:
“Afinal, Bolsonaro era o sujeito que dissera preferir um filho morto a um filho gay. Que gay é resultado da falta de surra. Que não é bom alugar uma casa para um gay porque desvaloriza o imóvel. Sempre tive dificuldade de entender como um pai escolhe votar num político que insulta seu próprio filho de modo tão visceral. Meu pai e eu ficamos sem nos falar durante o ano da eleição – e até hoje temos contatos apenas esporádicos. O abismo, que já era grande, tornou-se ainda maior. Meu pai é um cara afetivo, sensível. Sou o primeiro gay com quem ele lida. Pouco a pouco, espero que ele aprenda a lidar com naturalidade.”
Não se constrói nada de bom tendo o ódio como base. Foi o que, infelizmente, aconteceu com o pai de Marco Pigossi e também com o país, que se viu inundado de ódio às ditas minorias, à classe artística, aos povos originários e até ao meio ambiente, que vem sendo dilapidado devido a uma política destrutiva que tem a cólera como premissa. Uma cólera que parece não querer poupar ninguém que ouse pensar ou ser diferente, como tão bem relata o trecho de O Evangelho segundo o Espiritismo. Uma cólera que fez Pigossi se afastar, entre amedrontado e decepcionado, do genitor. E olha que ele nem agiu feito o levita da história.
Ao escrever estas linhas, me lembrei do livro A elite do atraso, da autoria do sociólogo Jessé Souza. Nele, o autor deixa claro que a questão a partir da qual a História do nosso país, seja ela atual ou passada, deve ser explicada e entendida não é outra senão a escravidão. Diz ele:
“O ódio ao pobre hoje em dia é a continuação do ódio devotado ao escravo de antes. Quando as classes médias indignadas saíram às ruas a partir de junho de 2013, não foi, certamente, pela corrupção do PT, já que os revoltados ficaram em casa quando a corrupção dos partidos de elite veio à tona. Por que a corrupção do PT provocou tanto ódio e a corrupção de partidos elitistas é encarada com tanta naturalidade? É que o ódio ao PT, na realidade, foi o ódio devotado ao único partido que diminuiu as distâncias sociais entre as classes no Brasil moderno. A corrupção foi, portanto, o mero pretexto para permitir a expressão socialmente aceitável do sadismo contra os pobres, o covarde ódio de classe que é o verdadeiro DNA da sociedade brasileira. Não houve, portanto, nos últimos 150 anos, um efetivo aprendizado social e moral em direção a uma sociedade inclusiva entre nós.”
Quando se tem um modus operandi social calcado na cólera, os que se julgam superiores rechaçam toda e qualquer tentativa de entendimento e empatia com quem eles julgam inferiores. As mulheres, no caso dos machistas e misóginos; os LGBTQIA+, no caso dos homofóbicos; os negros, amarelos, indígenas e quilombolas, no caso dos racistas; os pobres, no caso dos classistas. Como a turma dos que se afinam pelo ódio (e também pelo sadismo, valha-me, Deus!) se atrai e troca figurinhas, o resultado é um país que precisa reaprender a própria história e auscultar com muita atenção a forma como age, a fim de deixar de se pautar pela cólera.
Impossível? Absurdo? Utópico? Não! No item 10 do mesmo capítulo IX de O Evangelho segundo o Espiritismo, o espírito Hahnemann diz que precisa ser deixada de lado a falsíssima ideia de que o homem seja incapaz de reformar a própria natureza. Ao cultivar tal pensamento, segundo ele, “o homem se julga dispensado de empregar esforços para se corrigir dos defeitos em que de boa vontade se compraz ou que exigiriam muita perseverança para serem extirpados”.
Faltam, portanto, empenho e coragem para rever nossa trajetória como brasileiros e também como espíritos imortais, analisarmos os porquês de sermos como somos e deixarmos de ser os eternos encolerizados. Demanda tempo, mas é a única saída para amadurecermos como nação e evoluirmos espiritualmente. Afinal, como diz Jesus, ao final da história que dá origem a este artigo, “Dentro de nós mesmos, será travada a guerra maior”.
Marcelo Teixeira
BIBLIOGRAFIA:
- KARDEC, Allan – O evangelho segundo o espiritismo, Federação Espírita Brasileira (FEB), 2ª edição, 2018, Brasília, DF.
- PIGOSSI, Marco – Eu me sinto invencível, Revista Piauí, edição 184, janeiro de 2022. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/eu-me-sinto-invencivel/
- SOUZA, Jessé – A elite do atraso: da escravidão a Bolsonaro, Estação Brasil, 2ª edição, 2019, Rio de Janeiro, RJ.
- XAVIER, Francisco Cândido – Luz Acima, Federação Espírita Brasileira (FEB), 5ª edição, 1984, Brasília, DF.
[1] Representante da tribo israelense de Levi. Segundo a tradição, os levitas eram encarregados do serviço religioso no Templo de Israel e também de interpretar as Escrituras e passar seu conteúdo para o povo.
[2] Livro sagrado da religião judaica. O nome é originário do termo hebraico Yará, que significa ensinamento, instrução ou lei.
Fonte: Wikipedia.
O autor vai a raiz da intolerância para com aqueles que julgamos inferiores a nós. O Brasil, somente às vésperas do século XX aboliu a escravidão e por pressão da Inglaterra. A ferida nunca cicatrizou, a intolerância com a diferença é o nosso cotidiano.
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