Os piores inimigos – 1ª parte: o medo 

Captura de Tela 2021-11-23 às 15.15.45No livro Luz acima, ditado pelo espírito Irmão X e psicografado pelo médium mineiro Chico Xavier, há uma história intitulada ‘Os maiores inimigos’. Nela, o autor descreve uma viagem que Jesus e Simão Pedro, um dos 12 apóstolos, faziam a pé de Cafarnaum a Magdala. Em dado momento, Pedro pergunta ao Cristo onde viviam nossos maiores inimigos. A intenção do apóstolo era combatê-los, a fim de que o Reino de Deus fosse implantado com rapidez e eficiência.

Como o Reino de Deus não é, a princípio, uma conquista externa, mas interna, o Mestre respondeu que a experiência a tudo revela no momento propício. Sem muita paciência para aguardar tal aquisição, Pedro alegou que esse processo seria demorado. Jesus, então, redarguiu: “para os que possuem ‘olhos de ver’ e ‘ouvidos de ouvir’, uma hora, às vezes, basta ao aprendizado de inesquecíveis lições”. E, de fato, no decorrer de uma hora, Pedro foi visitado por cinco inimigos, só que internos. Aqueles que residem dentro de nós e para os quais nem sempre damos a devida atenção.

Neste e em mais quatro artigos, falarei sobre os inimigos que se apresentaram para Pedro e que também nos visitam frequentemente. É preciso aprender a superá-los. Afinal, como diz o Mestre, ao final da lição, “dentro de nós mesmos, será travada a guerra maior”.

Inauguro a série com o medo, que dá o ar da graça quando Pedro notou que alguém se esgueirava por trás de algumas árvores. Crendo que era um fariseu querendo matá-los, Simão, fortemente irritado, disse asperamente ao  desconhecido para que se afastasse. Em seguida, ao tentar agarrá-lo, ouviu sonora gargalhada. Era André, seu irmão e também integrante do grupo dos 12 apóstolos, que, sorridente, havia chegado para viajar com ambos. Jesus, então, disse a Pedro para nunca se esquecer de que o medo é um adversário terrível.

Aproveitando a deixa da lição, quero falar sobre um medo infundado que assombra o brasileiro há décadas e que já passou da hora de ser superado: o medo do comunismo. Aliás, em meu segundo livro – “O espiritismo é pop” – há um artigo intitulado ‘Medo de comunista’. Fico bobo de ver como, no meio espírita, há gente que treme de medo só de ouvir falar em comunismo. Não deveria, e por diversos motivos.

O primeiro deles é o fato de termos abraçado uma doutrina que traz importantíssimos conhecimentos à luz da imortalidade da alma não só no que diz respeito à vida além-túmulo, mas também no tocante ao que acontece ao nosso redor, nesse mundo material tão cheio de contrastes e injustiças. O espiritismo é, portanto, uma importante ferramenta para que lutemos por educação, saúde, lazer, alimentação e trabalho de qualidade e universais para todos. Se não o fizermos, corremos o risco de sempre nos defrontarmos com o lamentável panorama social, político, econômico e cultural que tanto nos infelicita, década após década, geração após geração, reencarnação após reencarnação.

O segundo motivo é que o comunismo, do modo como foi testemunhado em meados do século passado nos países da chamada Cortina de Ferro, veio por terra junto com a queda do Muro de Berlim. Aliás, o que nações como Rússia, Ucrânia, Romênia, Cazaquistão, Albânia etc. vivenciaram, à época, foi uma radicalização das teorias comunistas, que resultaram numa série de ultrajes, perseguições, cerceamento de liberdades e que ganharam tintas ainda mais dantescas com a suposta Guerra Fria, que dividiu o mundo em Ocidente bonzinho capitaneado pelos Estados Unidos e Oriente malévolo comandado pela Rússia. Isso na nossa visão ocidental, pois, na visão oriental, os mocinhos eram eles. Coisas de líderes que se aproveitam de medos infundados para dominar os povos.

O terceiro é porque nunca houve, no Brasil, a intenção de se implantar o regime comunista. O que houve foram várias tentativas de fazer presente a justiça social. Tentativas, aliás, abortadas pelos donos do poder.

Resolvi tocar novamente no medo que muitos brasileiros (e muitos espíritas) têm de comunismo porque li recentemente, numa rede social, a seguinte postagem: “A ameaça de ‘comunismo’ exerce o mesmo papel do ‘homem do saco’ para adultos com capacidade cognitiva reduzida”. De fato, é vasto o número de gente que entra em pânico diante de uma ameaça comunista, assim como muitas crianças travessas, pelo menos à minha época, morriam de medo de serem capturadas pelo homem do saco, personagem que os pais inventavam para colocar os filhos na linha. Esse temor infundado pelo comunismo emergiu novamente por volta de 2018. E veio acompanhado de sandices como kit gay, mamadeira fálica e ideologia de gênero.

O medo de comunismo, enfatizo, é antigo no Brasil. Em artigo publicado no site do jornal “The Intercept Brasil” em setembro de 2018, o jornalista Alexandre Andrada fala sobre essa farsa historiográfica engendrada por um partido político bastante conservador que existiu no País em meados do século passado – a União Democrática Nacional (UDN). Um partido que, convém frisar, era o queridinho da grande imprensa e de setores conservadores da classe média (sempre ela!). A UDN, no entanto, não era o partido favorito dos eleitores. Por isso, vivia perdendo. Tudo bem semelhante aos acontecimentos políticos tupiniquins de 2002 para cá. Quando pouco ou mal sabemos sobre nossa História, nada aprendemos com ela e tendemos a repeti-la.

Segundo Andrada, tudo começou em 1946 devido a uma briga envolvendo os partidos políticos então dominantes: a UDN, que tinha como principal nome o deputado Carlos Lacerda; o Partido Comunista Brasileiro (PCB), do senador Luís Carlos Prestes; o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), de Getúlio Vargas e João Goulart; além do Partido Social Democrata (PSD), do qual Juscelino Kubitschek, que seria presidente da república de 1956 a 1960, era um dos membros. Essa farsa que mancha nossa História teve o apogeu em 1964, quando houve o golpe militar para livrar o Brasil da suposta – e mentirosa – ameaça comunista.

A UDN, durante os 20 anos em que viveu às turras com os demais partidos, tentava, de acordo com o apurado por Andrada, provocar uma cisão política no país por meio de notícias e editoriais falsos, que falavam sobre o risco iminente de o Brasil virar comunista. Tanto que, em 1947, a justiça tornou ilegal a existência do PCB e cassou o mandato de seus membros.

Os udenistas adoravam odiar e odiavam perder. Mas perdiam. Perderam para Getúlio em 1950 e para Juscelino em 1955. Em ambas as ocasiões, se utilizaram de alguns jornais para semear o medo e a paranoia falando sobre a ameaça comunista que poderia tomar o país de assalto. Balela! Fizeram pior, no entanto: tentaram dar golpes, que foram devidamente abafados e debelados pelas forças legalistas, garantindo, assim, a continuidade do processo democrático.

Chegou, contudo, o ano de 1960. Com ele, um candidato a presidente que era governador de São Paulo. Um homem que era um fenômeno político e vinha com um discurso moralista que prometia varrer a corrupção. Um candidato que a UDN resolveu apoiar: Jânio Quadros. Como ele venceu as eleições, a União Democrática Nacional parecia finalmente ter chegado ao poder, e para ficar por um longo período! Só que, meses depois, Jânio renunciava alegando “forças ocultas”.

Àquela época, presidente e vice-presidente não compunham a mesma chapa. O eleitor votava em ambos separadamente. Como Jânio renunciou, assumiu quem o povo escolhera, por voto direto, para ser o vice: João Goulart, que era do PTB. Foi uma balbúrdia por parte do Congresso, que não queria um herdeiro político de Getúlio Vargas na Presidência. O que fizeram? Tentaram se articular para que Jango (apelido de Goulart) não tomasse posse. E apoiados por parte da cúpula do Exército.

Como a outra cúpula, principalmente a do Rio Grande do Sul de Leonel Brizola, resolveu garantir a posse de Jango, o melhor foi deixar que tudo transcorresse como reza o voto popular. João Goulart foi empossado, mas nunca conseguiu governar como queria devido a um parlamentarismo meia-boca que limitou seu campo de ação. Pena: ele tinha ótimas ideias progressistas que decerto contribuiriam para o avanço social do país.

Mal Jango tomou posse, a UDN e seus asseclas já vieram com as armas de sempre: suposta conspiração internacional para tomar o Brasil de assalto; alegações de corrupção desenfreada; tendências comunistas, inclusive nas forças armadas; revolução armada preparada pelo presidente e com o auxílio dos homens do campo… Tudo invencionice da direita raivosa. Mas foi um prato cheio para que, em meio a uma crise econômica e a um ambiente de alta polarização política, os militares dessem um golpe. Um golpe que os udenistas quiseram dar em 1950, tentaram novamente em 1955 e conseguiram em 1964. E que seus herdeiros resolveram repetir em 2016, sempre com as alegações de sempre: corrupção nunca dantes ocorrida e, como não podia deixar de ser, comunistas prestes a invadir o país, tomar a propriedade alheia, acabar com as famílias e toda sorte de disparates engendrados por uma elite que se arvora no poder desde a época do Brasil Colônia e não gosta de lideranças que ousam estender a mão aos menos favorecidos. Daí para apelar para o irracional e infundado medo dos comunistas é um pulo. Quem de fato estuda e conhece a História do Brasil sabe que nunca houve tentativa de implantar o comunismo no Brasil. Mesmo porque, o mesmo veio abaixo junto com o Muro de Berlim, em 1989, conforme dito anteriormente.

O que há em nosso país, isso sim, é um sistema educacional deficiente que não forma cabeças pensantes; veículos de comunicação que, em sua maioria, não primam pela lisura e imparcialidade, mas por atender aos interesses das classes dominantes; políticos que atuam como aves de rapina para cima do erário; uma elite classista, inculta, sanguessuga e preconceituosa que não gosta dos pobres e tudo faz para suprimir seus direitos (algo que remonta desde os tempos da escravidão) e uma classe média (arquitetos, médicos, funcionários públicos, dentistas, empresários de médio porte etc.) que adora acreditar que pertence à elite. Por isso, esses profissionais liberais fazem questão de espezinhar quem eles empregam nas confecções, escritórios, restaurantes, clínicas e similares. Só que, na hora de dividir o bolo, a elite, que se compraz em manipular a classe média, lhe dá as costas e volta à vida faustosa da qual adora usufruir. Aí, já é tarde: lá vai a classe média fechar as portas das lojas que possui; abrir mão do plano de saúde, do financiamento do carro e da casa própria, da escola particular das crianças…

O verdadeiro homem do saco, portanto, não é o comunismo. É uma elite atrasada que manipula a opinião pública e tem políticos defendendo seus interesses com um único e específico objetivo: pilhar o país. Com o governo que tomou posse em 2018, vivenciamos o auge desse processo, com um bando de espertalhões utilizando o fantasma do comunismo para dar vazão a toda sorte de maldades.

Esqueçamos esse temor infundado de comunistas e invistamos em educação e informação de qualidade. Assim, teremos cada vez mais gente comprometida com nossas riquezas naturais, patrimônio cultural, soberania, ciência, saúde e muito mais que nenhum homem do saco ousará usurpar. Isso não tem a ver com comunismo, mas justiça social. E quando houver justiça social, todo mundo sairá lucrando, inclusive os mais favorecidos. Aí, não haverá baixa capacidade cognitiva que resista a tanto avanço!

Creio que muitos leitores devam estar estranhando um tema como esse num artigo espírita. Ressalto, contudo, que a literatura espírita já publicou textos que endossam o medo que ora aponto.

No livro Coletânea do além, o espírito Emmanuel, por meio da psicografia de Chico Xavier, em mensagem intitulada ‘Pergunta e resposta’, diz:

“O comunismo em suas expressões de democracia cristã está ainda longe de ser integralmente compreendido como orientador de vossas forças político-administrativas. Somente serão entendidas as suas concepções adiantadas, à luz dos exemplos do Cristo, quando reconhecerdes que o Evangelho não quer transformar os ricos em pobres e sim converter os indigentes em ricos do mundo, fazendo desabrochar em cada indivíduo a concepção dos seus deveres sagrados, em face dos problemas grandiosos da vida. Comunismo ou socialismo cristão não pode ser a anarquia e a degradação que observais algumas vezes em seu nome, significando, acima de tudo, a elevação de todos, dentro da harmonia soberana e perfeita.”

Em suma, não confundamos a ideia nascente com o que fizeram dela, no Leste Europeu de meados do século passado, visando a interesses radicais e escusos.

Já no livro Palavras do infinito, também psicografado por Chico Xavier, o espírito Humberto de Campos assevera: “Comunismo significa equilíbrio dos sacrifícios do povo, holocausto do homem à coletividade, interesse geral, eliminação da personalidade.” E arremata questionando: “Os brasileiros estão preparados para isso?”

Muitos devem estar se perguntando se sou comunista. Na verdade, sou um sedento por justiça social que gosta de estudar a mentalidade e o comportamento do brasileiro médio a fim de entender por que somos como somos e por que, apesar de sermos adeptos de uma doutrina cujo estudo deveria levar as pessoas à curiosidade intelectual sobre todo e qualquer assunto, acabamos por estagnar numa mentalidade não condizente com os tempos atuais e repetimos os velhos temores de antanho, que não deixam nem o país nem nós avançarmos.

Em entrevista concedida ao jornal espanhol “El país”, o australiano Martin Ravallion, ex-economista do Banco Mundial e professor da Universidade de Georgetown (Estados Unidos), ressalta que o capitalismo não funciona para todas as pessoas e que a desigualdade social, além de custosa, é uma notícia ruim para o crescimento econômico pelo fato de todos nós, cidadãos de um mundo de provas e expiações, estarmos todos conectados. Segundo ele, “Se a desigualdade não é bem gerida, não ocorre muito crescimento e não será possível aproveitar seus benefícios”. Isso quer dizer que todas as pessoas devem e precisam usufruir das benesses e riquezas produzidas pelo planeta. Caso contrário, enquanto houver desigualdade, todos nós continuaremos andando com o freio de mão puxado. Ravaillon, por fim, enfatiza: “É preciso apagar a ideia de que reduzir a desigualdade é coisa de comunista”. E ressalta também que é preciso minimizar as desvantagens das crianças vindas de famílias pobres. Isso se faz com políticas de inclusão social. Para que elas ocorram de forma efetiva, pelo menos quando se fala de Brasil, é preciso, como ressalta o economista australiano, acabar com essa ideia de que extinguir a desigualdade social é ardil de comunista.

Em O Livro dos Espíritos, no capítulo destinado à lei de igualdade, Kardec pergunta, na questão 806, se a desigualdade das condições sociais é lei da natureza e se, algum dia, ela desaparecerá. A resposta da equipe espiritual enfatiza que tal desigualdade não é obra de Deus, mas dos homens, e ressalta que ela desaparecerá quando o orgulho e o egoísmo deixaram de predominar. É o que acontece no mundo atual, onde poucos gostam de levar vantagem em cima da carência de muitos. Quando houver plena justiça social (e – Pelo amor de Deus! – não confundamos isso com comunismo) a única desigualdade que haverá será a do merecimento, na qual cada um recebe conforme os seus méritos próprios.

Medo de encarar a realidade como ela é, medo de sair do lugar comum e de se libertar de atavismos que só nos engessam no passado também são evidências de orgulho e egoísmo. Ah, esse terrível adversário chamado medo!

Esse temor infundado de um vento comunista que nunca de fato soprou para os nossos lados só atravanca o progresso social do Brasil. Ele precisa acabar. Estamos preparados para isso ou continuaremos com medo de bicho papão?

Marcelo Teixeira

 

BIBLIOGRAFIA:

  • ANDRADA, Alexandre – O golpe de 64 não salvou o país da ameaça comunista porque nunca houve ameaça alguma. The Intercept Brasil, 22/09/18. Disponível em: https://theintercept.com/2018/09/21/farsa-historia-ditadura-militar-comunista/
  • FARIZA, Ignácio – É preciso apagar a ideia de que reduzir desigualdade é coisa de comunista. El País, 05/08/19. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/08/02/economia/1564739067_996880.html
  • KARDEC, Allan – O livro dos espíritos, Federação Espírita Brasileira (FEB), 60ª edição, 1984, Brasília, DF.
  • SOUZA, Jessé – A elite do atraso, Editora Estação Brasil, 2ª edição, 2019, Rio de Janeiro, RJ.
  • TEIXEIRA, Marcelo – O espiritismo é pop, Ed. Ceac, 1ª edição, 2015, Bauru, SP.
  • XAVIER, Francisco Cândido – Coletânea do além, Livraria Allan Kardec Editora (Lake), 1ª edição, 1945, São Paulo, SP.
  • __________________ – Luz Acima, Federação Espírita Brasileira (FEB), 5ª edição, 1984, Brasília, DF.
  • __________________ – Palavras do Infinito, Livraria Allan Kardec Editora (Lake), 6ª edição, 1982, São Paulo, SP.

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Uma resposta para Os piores inimigos – 1ª parte: o medo 

  1. Beatriz da Costa Fernandes disse:

    Excelente texto! Principalmente em relação a cronologia história a que se propôs.
    O autor está bem situado no contexto da historigrafia brasileira e internacional.
    Conteúdo lúcido e coerente.

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