Espiritualidade de idolatria e submissão

22-2Não podemos nos omitir diante dessa grave denúncia e que está ultrapassando as centenas, em relação ao renomado médium (que nunca foi espírita, mas isso tanto faz): João de Deus de Abadiânia.

Nesses últimos meses, diversos líderes religiosos têm sido denunciados como assediadores, abusadores de mulheres e/ou crianças e adolescentes. Já escrevemos aqui um artigo a respeito, quando se falou do médium de Curitiba Maury Rodrigues da Cruz.

Depois foram monges budistas, sobre os quais se pediu uma posição mais clara e enérgica do Dalai Lama; depois foi o Prem Baba e, claro, os padres católicos de sempre.

O que todos esses abusadores denunciados têm em comum?

Todos são homens. Todos aparentemente abusaram de pessoas que estavam em situação de fragilidade emocional (seja por uma questão de doença física, psíquica ou por idade ainda imatura). E todos gozam de uma suposta superioridade moral, diante da qual a comunidade se curva reverente. Uma autoridade inquestionável, porque envolta nas dimensões do sagrado!

Então, vamos ao primeiro item… o machismo estrutural, enraizado em nossa cultura e em todas as culturas humanas, há milênios. Nesse mesmo instante em que estou escrevendo esse artigo, milhares de mulheres no mundo estão sendo assediadas, estupradas e mortas. Milhares de crianças estão perdendo precocemente sua infância, abusadas por pais, padrastos, tios, avôs, parentes ou estranhos.

Isso acontece no contexto da família, das instituições, das religiões. Em toda parte, os abutres abusam, se insinuam e acham que isso é natural, é seu direito, é o que os torna “homens”. Então, em primeiro lugar precisamos mudar a educação das crianças, afastando a ideia e a projeção de que o homem (masculino) tem que ser aquele macho predatório, sem sensibilidade e, portanto, sem compaixão de ninguém. Esse é o estofo do abusador e do estuprador.

Em segundo lugar, precisamos falar claramente às meninas e aos meninos também: falar sobre os abusos, sobre os cuidados que devem ter consigo, com os alertas que devem estar sempre presentes, já que estão mergulhados num mundo de homens violentos. O desafio é falar e conscientizar, sem que percam a capacidade de confiar no amor e no ser humano, principalmente no ser humano masculino. Falar de maneira delicada para compreenderem que são donos dos próprios corpos. Entretanto a fala só fará sentido se desde pequenas as crianças sejam tratadas com afeto e respeito, com cuidado e atenção. Elas saberão se proteger na medida em que forem protegidas.

Lembro-me da minha bisavó italiana, nascida no século XIX, que não cheguei a conhecer, mas cuja cultura de cuidado e atenção chegou até mim, através de minha avó e de minha mãe: essas mulheres estavam sempre de olho, não deixavam fechar as portas, não descuidavam de prestar atenção…não sei que experiências essa minha bisavó teve, para ser precavida e sempre atenta desse jeito. Mas com mães assim por perto, abusos não ocorrem.

Em terceiro lugar – e esse é o tema mais importante aqui: precisamos finalmente tratar a espiritualidade de forma desierarquizada. Nem mestres, nem gurus, nem médiuns veneráveis, nem sacerdotes inatingíveis. Humanos somos todos. A espiritualidade deve ser horizontal, no campo da fraternidade. Verticalidade só com Deus, o supremo. Mas Deus está dentro de nós, de todos nós.

Então chega de querer procurar salvadores, curadores, mestres, a quem nos entregamos cegamente. Qualquer tipo de relação religiosa ou espiritual que leve à submissão, à idolatria, à anulação da própria criticidade e razão, à humilhação, deve ser posta imediatamente sob suspeita. Mestres verdadeiros não querem submissão, nem obediência do outro. Querem servir, acolher, discretamente; ensinam sem espalhafato, através do exemplo e de conselhos que servem para todos. Jesus não aceitou o título de bom, Gandhi tinha horror quando o chamavam de Mahatma. Não aceitava devoção e submissão de ninguém.

A espiritualidade verdadeira e saudável promove o ser humano ao melhor de si. Empodera-o para superar seus problemas, para desenvolver suas capacidades. Não aprisiona a um guru que o pode explorar financeiramente, psiquicamente e… sexualmente.

O abusador, o falso profeta seduz com elogios (você é especial!), oferece milagres, ameaça, submete.

Então, como tanta gente cai numa cilada dessas, quando é tão óbvio o engodo? Nunca tinha ido ver João de Deus, mas nada me caía bem: as pessoas (sobretudo mulheres) ajoelhadas diante dele, ele sentado numa espécie de trono, acima do povo, os retratos dele próprio na parede… quando um suposto líder espiritual não se envergonha de receber devoção e homenagens indébitas, já de imediato pode-se desconfiar dele. Além disso, o comércio em torno das atividades dele (a Veja publicou em 2013 um artigo alertando sobre os seus milhões), já o colocam de imediato sob a suspeita de charlatanismo.

Considero que o mais problemático são os espíritas não terem suficiente avaliação crítica para não perceberem de antemão o clima de exploração das massas. Embora ele nunca tenha se declarado espírita e ter práticas diferentes das propostas pelo espiritismo, conheço muitos espíritas que lá foram!  E gostaram. Quem estuda Kardec deveria saber que a mediunidade deve ser algo desprendido, discreto e jamais espetacular e que os médiuns são seres falíveis como qualquer um e não devem ser endeusados.

Trabalhei durante mais de 20 anos num trabalho mediúnico de cura, com uma médium já falecida, minha querida amiga D. Addy Piedade, no Centro Espírita Pedro e Anita em São Paulo. Eu ficava na sustentação com outras pessoas. Foram dos momentos mais elevados espiritualmente que tive em minha vida. No entanto, ela fazia um trabalho anônimo, para pouca gente, devagar e sempre, sem nenhuma ostentação e sempre demonstrando carinho, respeito e acolhimento para as pessoas que vinham buscá-la. E vi muitas curas acontecerem, até com pessoas da minha família.

A mediunidade deve ser, assim, distribuída democraticamente entre muita gente, que trabalha em pequenos círculos familiares e em centros discretos. A mediunidade espetáculo, onde multidões vão buscar cura, cartas, oráculos, dá sempre nisso. Nenhum médium tem essa potência de curar a todos, de atender com veracidade a todos. Se tivesse, seria um Jesus e mesmo Jesus não curava todo mundo e nem se punha como fonte distribuidora de milagres. Dizia: “vai, tua fé te salvou!” Essa é a verdadeira cura, aquela que nos remete ao nosso próprio poder e não aquela que manipula nosso desejo de salvação fácil.

Cresçamos e deixemos de ser crianças espirituais, sempre pedintes de consolo, cura, cartas. Formemos muitos médiuns, trabalhemos em círculos pequenos e igualitários. Façamos uma espiritualidade de comunhão e escuta mútua e não de idolatria e submissão! E uma espiritualidade com muitas mulheres!

Finalmente, quero deixar a minha solidariedade às inúmeras vítimas, incluindo a filha dele, que conta sua vida de extrema violência e nossa indignação em relação a esses homens, que como se já não bastasse o machismo nosso de cada dia, ainda fazem do campo da fé, um campo de violência sexual.

Quero deixar registrado aqui também meu apoio à Sabrina Campos Bittencourt que, tendo sofrido ela mesma violência sexual de religiosos, está nesse ativismo necessário e urgente de denunciar e ajudar as mulheres a contarem suas dores. Coragem admirável de todas elas, porque é através da fala destemida e franca, que havemos de curar essas chagas da humanidade.

 

 

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30 respostas para Espiritualidade de idolatria e submissão

  1. Cláudia disse:

    Só queria comentar que há relatos de pastores evangélicos e de país de santo também.

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  2. Marta Marcondes Piedade disse:

    Artigo lúcido e que nos ajuda a refletir.

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  3. Janice dias de Moraes disse:

    Excelente , Dora querida!!

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    • Teresinha Osório disse:

      Muito triste notícias tão dolorosas.
      O ser humano precisa atentar para a necessidade de criticidade.
      Ser humano, é um ser por excelência falível.
      Criar ídolos, é sinônimo de ignorância e fanatismo .
      Necessário estudar e observar ,para evitar ser partícipe de condutas equivocadas, de pessoas que se intitulam salvadoras.

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  4. Silvia Dalanholli disse:

    Concordo com o que foi escrito, porém reitero que, é necessário seguir o exemplo de sua vó e sua mãe, mas também, é importante que homens -aqueles de bem – sejam cuidadores, para que meninas e meninos saibam que possam confiar em pessoas humanas, que as protegem. As mulheres são por natureza, cuidadoras, sendo necessário que nesse mundo evoluído tecnologicamente que vivemos, os homens também tomem essa frente, todos juntos, homens e mulheres, formaremos crianças fortes e saudáveis. Para fazermos desse planeta em um lugar cada vez melhor, luz e paz para todos nós.
    Excelente reflexão…

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    • Cacá disse:

      Impossível ler a matéria e não lembrar que “cuidar e cuidado” é relativo: em um dos casos denunciados, uma das vítimas narra que seu pai estava na mesma sala em que foi abusada pelo Sr. João, exortado por este a permanecer de olhos fechados e de costas orando pela filha – enquanto o Sr. citado perpetrava seu ato. Independente de sermos homens e mulheres, devemos sim ser cuidadores, mas sobretudo inquisidores o suficiente para duvidarmos de quem quer que seja.

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    • Vivian dos Santos Molina Valenti disse:

      Concordo plenamente!!!

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    • reginacscgmailcom disse:

      Devo discordar que mulheres são “naturalmente” mais cuidadosas. Somos mais precavidas, vivemos na cultura da violência sexista, por isto, mais precavidas. Homens podem, e devem, ser tão cuidadosos com a infância como mulheres. Talvez não o sejam por serem bem menores os índices de abuso sexual sofridos por homens e meninos. E por, culturalmente, a responsabilidade das agressões sofridas por crianças ser imputada à mulheres.

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  5. ADRIANA J SANTOS disse:

    Parabéns Dora, por se manifestar. A coisa tranca na garganta e a gente só se sente melhor depois de se manifestar. É da sua natureza essa franqueza lúcida. Eu estive na cidade de Três Coroas/RS na casa em que ele atendia e senti muito latente naquela época a questão da exploração econômica, não imaginava que poderia ser pior. Aliás aqui se comenta que ele saiu daqui “corrido”. O movimento espírita tem que lutar muito ainda para esclarecer que mediunidade não é “santidade” e nesse sentido são maravilhosas e proveitosas as lições do “Livro dos Espíritos”.

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  6. Alicia disse:

    “Mas com mães assim por perto, abusos não ocorrem.”
    Mães e pais por perto né? 😉

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  7. Victor Ferreira. disse:

    Excelente, Artigo. Foi muito feliz em diversos momentos no texto em abordar não só a questão humana, mas espiritual. Isto é esclarecedor. Parabéns.

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  8. Jussara de Magalhaes Gomes disse:

    É isso , Dora

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  9. Terezinha Vasconcellos disse:

    Concordo com tudo o que vc disse

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  10. sim3br disse:

    Olá!

    Gostei muito do texto. Ele traz apontamentos que já defendia sobre a democratização da prática mediúnica, da revisão das ideias de “liderança” espiritual. Sempre o papel e relação com a mediunidade de João como algo “estranho”, pensando em nível doutrinário dada pelos espíritos.

    A única coisa que me incomoda neste texto é a fala sobre a avó e mães que cuidavam e, por isso, essas coisas não aconteciam. É um equivoco pegar fala de algumas poucas pessoas e toma-las como fato para todos os casos… Temos sempre que lembrar que os tempos são outros. Que o cuidado visto como algo “apenas” de mães também é uma visão machista estrutural.

    Ademais, os tempos são outros. As mulheres trabalham. Falar que antes as mães cuidavam mais e que precisa voltar a ser desse modo, pode levar a uma ideia de mulher como “portadora’ exclusiva da função de cuidado. Portanto, qualquer abuso é culpa delas. Isso é um erro! E acho que sua colocação dá esse viés inconsistentemente…

    Não é culpa das mulheres o abuso de seus filhos. Nem culpa de mulheres formadas o abuso de homens. Sei que você concorda come essa minha afirmação. Seu texto foi sobre isso. Mas, a colocação sobre cuidado das mães, leva a uma contradição sobre o papel das mulheres, sobre a forma de cuidar, e, por consequência, gera uma ideia de que “se houve abuso, foi por mal cuidado, logo, a culpa é da mulher”.

    Bem, desculpe a extensão. Ressalto que adorei o texto, feito a ressalva acima.

    Abs

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    • Dora Incontri disse:

      Olá! Agradeço seus comentários. É que eu quis dizer o seguinte: que tem que haver uma cumplicidade, um vínculo forte entre as mulheres, e aí incluindo as da família, claro, para uma defesa contra o machismo, o abuso… Conheço inúmeros casos de abuso em que as mães se calaram sim, foram coniventes, fingiram que não viram ou não prestaram atenção ou tiveram um processo de negação. Conheço casos em que elas próprias foram abusadas por familiares e não defenderam as filhas dos abusos desses mesmos familiares. Sei que há bloqueios psíquicos, processos de negação, como há enraizamentos culturais para tudo isso. E não se pode de fato generalizar. Mas quis contar sobre a tradição das mulheres da minha família e jamais pensei ou afirmei que para “cuidar”, observar, proteger, a mulher tenha que voltar para casa e assumir apenas a função de mãe de família.

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    • Anderson disse:

      Sabemos que é em menor número, mas, não podemos esquecer que existem casos onde a mulher também se apresentou como a abudadora.

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    • Cacá disse:

      Parabéns pela sua colocação que, diga-se de passagem, me representa, mas que eu certamente não saberia explanar com tamanha lucidez e delicadeza.

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  11. Nadja disse:

    Que texto cheio de verdade, indignação, mas humanidade. É difícil abordar uma coisa tão revoltante deixando tão claro que segue amando a humanidade. Gratidão.

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  12. Nadja disse:

    Que texto cheio de verdade, indignação, mas humanidade. É difícil abordar uma coisa tão revoltante deixando tão claro que segue amando a humanidade. Gratidão.

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  13. Margo Godoy disse:

    Concordo plenamente, é preciso amadurecer, crescer e entender de vez o que diz a passagem bíblica que nos alerta sobre os falsos profetas e até mesmo falsos Cristos. Faço de suas palavras as minhas. Obrigada pelo texto muito elucidativo.

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  14. Teka Chacon disse:

    Admirável Chico Xavier, em sua humildade nos deixou que caridade é se doar!!
    Nunca, nunca acreditei nesse monstro que usou o nome de Deus!!
    Agora é sua hora de colher e mal que tanto causou aos mais simples.

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  15. Tatiana disse:

    O Evangelho ensina que, a caridade deve ser discreta o suficiente, para não humilhar quem a recebe. Se a pessoa recebe o agradecimento e reconhecimento dos homens, não precisa da de Deus !

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  16. adrianajaegersantos disse:

    Diversas reflexões sobre esse episódio de João de Deus, uma delas: Porque se espera tanto para investigar denúncias de abusos? Porque não se ouve as vozes das vítimas a menos a titulo de “precaução”? Porque se permite a truculência e o endeusamento de homens falhos, médiuns, gurus, quando o próprio Jesus evitou ser enaltecido e já disse que o “maior é aquele que se fizer menor” e que os que gostam de “sentar nas primeira filas” são os que menos valem a pena? Reflitamos para o movimento espírita que está cheio desses defeitos também, e esperamos que não seja preciso estourar uma reportagem na Globo (que não sou fã, mas sempre tratou com muito respeito e seriedade o espiritismo, isso não podemos negar) para se tomar uma providência.

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  17. Christianne Ferreira Vernasque disse:

    Lindo texto, porque esperamos sempre tanto do ser humano, acredito que no caso do João de Deus, tinha muita coisa envolvida, muito dinheiro, e toda a estrutura que foi montada em cima disso. E acredito que todos os envolvidos são coniventes com a prática aplicada por ele. O que me deixa muito triste são as pessoas que foram buscar um alento, uma cura foram abusadas em todos os sentidos. Mas a lei de Deus é pra todos, sem distinção.

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  18. Republicou isso em Leveconscienciae comentado:
    …e esse é o tema mais importante aqui: precisamos finalmente tratar a espiritualidade de forma desierarquizada. Nem mestres, nem gurus, nem médiuns veneráveis, nem sacerdotes inatingíveis. Humanos somos todos. A espiritualidade deve ser horizontal, no campo da fraternidade. Verticalidade só com Deus, o supremo. Mas Deus está dentro de nós, de todos nós.

    Então chega de querer procurar salvadores, curadores, mestres, a quem nos entregamos cegamente. Qualquer tipo de relação religiosa ou espiritual que leve à submissão, à idolatria, à anulação da própria criticidade e razão, à humilhação, deve ser posta imediatamente sob suspeita. Mestres verdadeiros não querem submissão, nem obediência do outro. Querem servir, acolher, discretamente; ensinam sem espalhafato, através do exemplo e de conselhos que servem para todos. Jesus não aceitou o título de bom, Gandhi tinha horror quando o chamavam de Mahatma. Não aceitava devoção e submissão de ninguém.

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  19. Joyce disse:

    Isso que acontece quando EU e VC colocamos nossa fé em um intermediário, nossa Fé deve ser posta apenas nele , no Criador! Só ele cura!!

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