Na música Iron Man, da banda de rock britânica Black Sabbath, o “homem de ferro” é alguém que viaja no tempo para ajudar a humanidade, possivelmente cheio de boas intenções. Porém, no meio do caminho ele é afetado pelo campo magnético e se transforma em aço. Com isso, as pessoas começam não somente a evitá-lo, mas também a espezinhá-lo e a maltratá-lo, o que faz com que ele perca o sentido da vida, as referências morais e a própria sanidade e, em lugar de ajudar, seu desejo agora passa a ser o de vingança, de se impor e fazer valer seus desejos pelo uso da violência e da morte.
Assim, diferentemente do herói do filme homônimo, o “homem de ferro” retratado na música é uma metáfora de nossa experiência moral e afetiva, e caracteriza bem os habitantes de planetas de provas e expiações, seres ainda instáveis e cindidos, em busca da conciliação de suas capacidades de amor e de razão, mas que, almejando fazer o melhor, são capazes de cometer as maiores atrocidades, seja nas relações familiares e interpessoais, seja nas relações sociais mais amplas. O mesmo se dá com outras metáforas, como Lúcifer ou Anakin Skywalker (de Star Wars), seres potencialmente bons, porém, tendo se corrompido moralmente de tal modo, pelas mais diversas situações, que passaram a fazer o mal como se fosse o bem.
Logo, o “homem de ferro” representa aqueles que, geralmente imbuídos dos mais elevados e nobres valores, das mais apaixonadas e boas intenções, são colocados em permanente confronto com seus semelhantes por causa desses valores e dessas intenções. Nesse confronto, não se é apenas ignorado, mas se depara com o que há de pior: a ridicularização, as chacotas, a humilhação, a perseguição, sendo pisoteado, algumas vezes, por quem fora ajudado outrora. Então, dificilmente encontrando um sentido para isso e sem conseguir articular racionalmente tais situações, recorre-se à violência para fazer valer sua intenção (repita-se, inicialmente boa), não mais convencendo as pessoas, mas submetendo-as, tutelando-as, violentando-as.
Não sei se você percebeu, mas isso é a própria história da humanidade, na qual abundam exemplos de movimentos que, no discurso e na teoria, objetivavam emancipar a humanidade, mas acabando por se tornar em formas reconfiguradas de violência implícita ou explícita. Eram movimentos que pretendiam libertar da opressão, tendo se convertido, eles mesmos, em novos modos de opressão.
E se as religiões sempre foram empregadas para exercer esse tipo de violência, o século XX foi fértil em demonstrar que mesmo os empreendimentos políticos seculares, não-religiosos (até mesmo ateus), também recorreram às formas reconfiguradas da violência e da tutelagem para submeter as pessoas aos seus programas de “libertação”. Vale lembrar a afirmação de Zygmunt Bauman, em “O Mal-estar da pós-modernidade”, que grandes crimes partem de grandes ideias, sendo que quanto maiores os ideais de beleza, de pureza e de ordem, maiores serão os efeitos colaterais no combate aos respectivos contrários, de feiura, de impureza e de desordem.
Isso também significa que o espiritismo, apesar de textualmente ser uma doutrina emancipatória – pois fornece novas referências para que tenhamos mais autonomia para lidar com o mundo – e revolucionária – pois rompe os horizontes nos quais temos vivido e nos abre para uma nova ordem de prioridades (de cunho moral e espiritual) – também pode ser apropriado num viés não somente conservador das estruturas que caracterizam um planeta de provas e expiações, o que já é uma violência, mas também pode servir de instrumento teórico e ideológico para avalizar o mal e justificar as formas de dominação e de tutela das consciências.
Desse modo, a pergunta “como fazer para que a luta contra a opressão e a dominação não se converta em novas formas de opressão e dominação?” continua em aberto, e propostas sociopolíticas e espirituais, como a de Jesus, permanece uma alternativa a ser ainda realizada.
A conclusão é que, diante da tentação do uso da violência, mesmo para alcançar os mais belos e importantes feitos, superar a moralidade do “homem de ferro” é um desafio para espíritos imperfeitos como nós, e a reflexão constante sobre nossa vida moral, a busca pelo aperfeiçoamento de si e do meio social, e a crítica espírita do mundo são três tarefas essenciais e intermináveis.
Raphael Faé (editor do Jornal Crítica Espirita)
Muito bom. Disseminando!
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