
Tenho sempre defendido nessa coluna o exercício de uma espiritualidade crítica, que possa preservar a nossa conexão com o transcendente, mas nos livre das opressões e repressões que se praticam aos quatro ventos das religiões. Pois acaba de ser lançado um livro indispensável para este debate: Abuso espiritual – a manipulação invisível de Gabriel Perissé, pela Editora Paulus.
O autor, amigo de longa data, tem doutorado em Filosofia da Educação pela USP e em Teologia pela PUC-RS, entre outras titulações, e é escritor de muitas obras sobre educação, espiritualidade e literatura. Com um estilo refinado e saboroso e um raro alcance erudito, consegue dar nesta obra uma contribuição muito oportuna.
Como se diz hoje, o lugar de fala de Perissé é o catolicismo, mas um catolicismo arejado, justamente crítico dos extremismos. A obra, porém, não se limita a citar situações possivelmente vividas em ambientes de forte repressão no meio católico. O autor procura abarcar narrativas em ambientes protestantes, espíritas ou espiritualistas. Tudo sem dar nome aos bois, nem a pessoas, nem a instituições e grupos envolvidos. O que calha muito bem, para não provocar avalanches de queixas, cancelamentos e até processos. Mas quem frequentou algum desses ambientes certamente saberá identificá-los.
Gabriel também se socorre de autores de diferentes matizes teológicas, sobretudo católicas e protestantes e de diversas fontes literárias, filosóficas e das ciências humanas. Um livro muitíssimo bem articulado, que se lê com gosto e rapidez.
Com gosto e com desgosto, porque pretende-se nas páginas que correm o dissecar de um fenômeno que causa incômodo e repulsa, para dizer o mínimo: o fenômeno frequente entre seitas e religiões de uma manipulação sutil (ou nem tanto), que revela uma espécie de abuso espiritual. A vítima é cooptada e passa por uma forma de lavagem cerebral, de hipnose, em que se vê voluntariamente submetida a todo tipo de opressão em sua vida pessoal, econômica, mental e, sobretudo, espiritual.
Para analisar essa relação, que poderíamos chamar de submissão voluntária – porque há uma captura da vontade de vítima pelo abusador, que se constitui como autoridade inquestionável e sádica – Gabriel Perissé se serve de exemplos contados por vítimas e da ajuda de textos de psicólogos, psicanalistas, filósofos e religiosos críticos (que não aderem a esse tipo de desvio patológico). Ou até através de análise de figuras e livros amplamente conhecidos e, portanto, nomeados, e que representam o que há de mais explícito e extremo em termos de manipulação das massas: Adolf Hitler e Edir Macedo. Trechos das obras de ambos são inteligentemente evocados.
Dá-se que o abuso praticado por tantos sacerdotes, pastores, gurus, médiuns ou seitas e instituições, acaba por dilacerar a vida de muitos jovens, que são atraídos por seu idealismo ingênuo, por carências afetivas, vazio existencial e desejo de pertencimento e segurança.
E – o que é muito relevante apontar e Gabriel o faz com veemência – isto tem por consequência, o afastamento da vítima de sua própria espiritualidade e da sua conexão com o divino. O trauma pode levar a pessoa à perda da fé e a um vazio ainda maior, com graves adoecimentos psíquicos e até ao suicídio.
Como tenho feito com frequência aqui, o melhor para criticar o fundamentalismo e o fanatismo (dois aspectos essenciais do abuso espiritual), é trazer ao foco em que consiste a espiritualidade verdadeira, positiva, que restaura e emancipa a pessoa humana, porque desperta sua essência divina e não a amedronta com ameaças e castigos.
No caso do cristianismo, Gabriel bem recorre a Jesus:
“A hipocrisia e a crueldade do abusador são condenadas por Jesus que, em contrapartida, empenha-se em libertar os seres humanos de toda escravidão espiritual. Retomando a mesma imagem, dizia Jesus que seu fardo era leve e suaves as suas exigências. Os seus seguidores eram formados para viver uma religiosidade leve, confiante na graça divina, e alertados sobre o que é o abuso espiritual, sobre como deveriam se proteger dele e não praticá-lo de modo algum.
Quem vive uma religiosidade saudável busca o Deus da paz, cultiva a serenidade. Já o abusador espiritual pretende instaurar a ansiedade, as tensões, para melhor manipular suas vítimas.”
A proposta acolhedora, amorosa e emancipatória de Jesus continua sendo um antídoto contra o farisaísmo que manipula econômica, sexual, mental e espiritualmente suas vítimas, criando traumas, às vezes insuperáveis.
No livro de Gabriel Perissé, há um farto material de análise e reflexão, com excelentes definições do que são o fundamentalismo, o fanatismo, as seitas e ao mesmo tempo, caminha-se para apontar como se pode prevenir as pessoas de caírem em abusos ou de enveredarem no papel de abusadores, com discernimento, autoconhecimento, racionalidade e espírito crítico.
Uma obra imperdível, em tempos dos avanços extremistas e dos fundamentalismos de toda espécie no cenário conturbado do mundo.
Dora Incontri
Esse artigo foi publicado originalmente na coluna semana de Dora Incontri no Jornal GGN. Acompanhe as publicações por lá no link abaixo:
(https://jornalggn.com.br/cidadania/abuso-espiritual-um-livro-necessario-por-dora-incontri/)
Dora Incontri entrevistou o autor do livro no programa Conexões, do canal da ABPE, no youtube. Aproveite e se inscreva no canal!






Tenho acompanhando o trabalho do Prof. Gabriel Perissé. Sua literatura é um alento. Extremamente necessária para os nossos dias. A entrevista com a Dora foi maravilhosa.
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