O psicólogo do desenvolvimento Yves de La Taille estuda o o processo de aprendizagem da moral nas sociedades humanas. Ele explica que a moral é a restrição da liberdade dos indivíduos para que possam viver em sociedade e que cada sociedade desenvolve seus próprios códigos de conduta. A família portanto é o núcleo mais básico onde esse código será vivenciado pela criança que está aprendendo a moral. Mas para além da família, a religião, a cultura e as tradições que compõe o que é socialmente aceito para um determinado agrupamento de pessoas, serão as influências responsáveis pela formação moral da criança. Podemos incluir a escola e o Centro Espírita nesse círculo de influências formativas.
Segundo Yves, a moral não se ensina por explicações e histórias, mas sim por ações e exemplos cotidianos. E o mais importante de tudo – ainda que as leis morais se refiram aos comportamentos do indivíduo, elas têm um caráter coletivo porque existem para regular a relação do indivíduo com o outro. A moral só faz sentido na convivência entre os indivíduos e não quando há o rompimento dessa convivência.
As leis morais mosaicas como o “não matarás” ou “não cobiçarás a mulher do próximo”, impõem restrições na liberdade do indivíduo para determinar como o grupo humano que adota essa moral vai regular as relações de seus membros. A partir dos 10 mandamentos que vieram de cima para baixo (literalmente), o judaísmo desenvolveu um complexo código de regras, e isso levou a disputas internas sobre a interpretação sobre o uso dessas regras. No tempo de Jesus, existiam muitos grupos de judeus com visões diversas sobre qual seria a forma correta de viver segundo as leis. O próprio rabi de Nazaré questiona as leis judaicas, interpretando que acima de todas elas (inclusive acima das leis mosaicas) deveria vir o “amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo com a si mesmo”.
A diferença entre a regra de ouro de Jesus e as leis de Moises é que a primeira fala de uma ação (amar) que o indivíduo deveria incorporar no seu exercício de convivência (com Deus e com o outro), e a segunda é uma série de restrições dos impulsos. Podemos dizer que Jesus vê o indivíduo com um ser que pode superar a si mesmo através da sua autonomia (“vá e não peques mais”, além de perdão incondicional é claramente um voto de confiança na capacidade da pessoa). Moisés por outro lado via os indivíduos como seres controlados pelo instinto (pelo mal) que precisavam de castigo e punição para poderem conviver.
Antes de falar da moral espírita que é objeto desse texto, é importante trazer alguns conceitos sobre o desenvolvimento infantil e as fases da aprendizagem.
O psicólogo Jean Piaget foi o primeiro a colocar o processo de aprendizagem no microscópio da ciência moderna. Ainda que ele tenha feito isso num tempo em que não se discutia a influência do viés no pensamento cientifico (hoje sabemos que o trabalho dele sofreu influência da moral da sociedade na qual ele estava inserido), o raciocínio esquemático produzido por ele nos ajuda a entender.
Piaget organizou o aprendizado da moral em três fases – anomia, heteronomia e autonomia. Anomia é a fase da primeira infância onde o ser vive num universo sem regras sociais. O bebê apenas reage às suas necessidades básicas e quando os adultos tentam impor regras (horário para mamar, por exemplo) a criança chora de fome e não aprende a regra. A heteronomia é a fase seguinte, onde a criança imita os comportamentos e abraça as regras de forma radical (certo e errado, bem e mal esquemáticos e simplistas). Para Piaget essas regras vêm das várias instâncias que cercam a criança (família, cultura, religião, escola) e são impostas muitas vezes por coação (“Deus/a mamãe/a professora vai ficar triste com você se você não fizer isso…”). O respeito (obediência) nessa fase é unilateral – a criança respeita o adulto, mas o adulto não respeita a criança. O exercício e o aprendizado da moral se dá entre outras formas através dos jogos (brincar com regras), e é a competição que estimula esse aprendizado. E por fim a autonomia onde o indivíduo já internalizou as regras morais (do socialmente aceito naquele grupo humano). Nessa fase, a relação de respeito é mútua e a cooperação é a norma. Por isso é na fase da autonomia que os adultos entendem e avançam conceitos como justiça, igualdade e democracia.
É evidente que esse esquema do Piaget tem problemas. A ciência do século XXI já sabe que existe uma proto moralidade no comportamento de grupos de macacos e no comportamento dos bebês humanos. Também sabemos hoje que a coação, seja através da barganha ou da violência verbal ou física, tem consequências pesadas para o indivíduo. As barreiras emocionais decorrentes desses traumas vão dificultar o acesso à autonomia na vida adulta como foi descrita por Piaget. Mas o psicólogo suíço escreveu sobre suas pesquisas nos anos 1930 e a influencia hegemônica da moral cristã (protestante e católica) naquele contexto pesaram. E compreender isso nos traz de volta ao assunto da moral espírita.
No espiritismo, as Leis Morais (Livro dos Espíritos) mantêm o “amar a Deus sobre todas as coisas” (lei de adoração), ainda que esse Deus seja muito diferente do Deus das igrejas cristãs. As leis do trabalho, da reprodução, da conservação, da destruição e da sociedade dão conta dos processos da natureza aos quais estamos submetidos. Esses processos são vistos pelo espiritismo como evolutivos em consonância com a (naquele momento) nova compreensão da ciência sobre a natureza. As leis do progresso, da igualdade, da liberdade e da justiça, amor e caridade falam da liberdade e da responsabilidade como motores da evolução dos espíritos. Essas leis falam do desenvolvimento intelectual e afetivo. Assim como qualquer moral, a espírita se refere aos comportamentos individuais mas sempre em relação ao outro (coletivo). O progresso é portanto resultado da liberdade que nos proporciona o senso de responsabilidade para convivermos, sabendo que somos todos parte de um processo (natureza) e que a cooperação (fraterna, igualitária) são nossa ferramenta evolutiva.
Aqui podemos ver alguns problemas na prática do espiritismo que se desenvolveu no Brasil no século XX. De um lado a moral católica pode ser relacionada com o que Piaget chamou de heteronomia, com suas regras (dogmas) impostas de cima para baixo (respeito unilateral), com noções esquemáticas de certo e errado (céu e inferno), e punições como forma de educação (castigo divino). De outro a moral espírita que se ensina e se vivencia na prática dos centros espíritas dissemina o medo do umbral (o inferno dos espíritas) com seu vales purgatórios. Estimula a ideia de carma como punição fatalista para os erros cometidos nas encarnações passadas e entende os espíritos encarnados como involuídos (caídos). Na prática o espiritismo brasileiro adaptou a moral católica.
As Leis Morais do espiritismo têm relação com a autonomia. Mais do que isso, se entendemos que uma criança é um ser reencarnado, ainda que vivendo um período de “esquecimento” de suas experiências anteriores, não podemos acreditar que ela é só instinto (anomia), que precisa de coação e estímulo a competição para internalizar valores (heteronomia). São a consciência da nossa condição (espíritos reencarnados em processo de evolução), a convivência (cooperação) e a liberdade que nos farão progredir. E essa é a base da pedagogia espírita!
(Na segunda parte sobre a moral espírita vamos falar sobre o processo de educação e o papel da pedagogia espírita no ensino da moral.)
*essa reflexão foi resultado da minha participação na mesa redonda promovida pelo Coletivo Espírita pela Transformação Social sobre ética e espiritismo. Curtam a página e acompanhem o trabalho deles pela renovação do movimento espírita!
Ótimo texto, bem didático. Nós espíritas falamos sem parar em moral, muitas vezes sem saber o real significado da palavra.
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Pingback: Considerações sobre a moral espírita (parte 2): a educação moral | Blog da ABPE
Texto elucidativo! Os espíritas precisam se libertar dos entendimentos religiosos do passado e se voltarem para Kardec e a moral espírita eutônoma.
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