Kardec, viés de confirmação e ceticismo

CUEE.jpgAcompanho há algum tempo grupos de espíritas nas redes sociais que se dispõem a debater assuntos “à luz do espiritismo” (pode ser também “segundo o espiritismo” para ter um ar mais kardecista). Muitos desses debates partem de provocações sobre temas polêmicos dos nossos dias como aborto, suicídio, eutanásia, sexualidade e política. Outros temas recorrentes são a elevação espiritual de figuras como Kardec, Bezerra de Meneses, Chico Xavier entre outros, os detalhes ocultos da vida de Jesus e quem foi reencarnação de quem entre os vultos do movimento. Há ainda debates sobre os escolhos da mediunidade, os verdugos e as obsessões, as curas, os carmas e as cirurgias espirituais (exatamente assim com esses termos que são clássicos do jargão espírita). Mas para onde toda essa conversa nos leva?

Antes é preciso fazer uma análise da dinâmica desses debates. Na maior parte, os comentários que se seguem a provocações ou perguntas que são postadas nos grupos são opiniões pessoais. A maior parte das afirmações que disparam o debate também são opinativas. Os argumentos que embasam as opiniões são na maior parte da vezes citações de trechos de Kardec ou de obras psicografadas por médiuns que dão voz à opinião de espíritos. Busca-se então a consonância entre a opinião pessoal com a opinião dos espíritos ou dos escritos de Kardec e isso se chama viés de confirmação.

Quando acreditamos numa determinada ideia, temos uma forte tendência a interpretar os fatos de tal forma que eles “provem” que a nossa hipótese está correta. Essa leitura seletiva que confirma aquilo que já acreditávamos ser verdade pode ser uma escolha consciente, para ganharmos respeitabilidade diante de um determinado público, ou pode acontecer porque temos uma fé muito grande em algo que ainda não foi comprovado. Por isso, o viés de confirmação acontece em todas as áreas do conhecimento, e é preciso muito esforço e desprendimento para que os argumentos e fatos levantados não trabalhem a serviço da tese.

Nas trocas de argumento mais acaloradas é recorrente a carteirada – que vai desde uma afirmação “definitiva” de uma figura de autoridade, ao questionamento das credenciais do interlocutor (tipo: Você leu mesmo Kardec? Toda a obra dele? Tem certeza?). Outra argumentação comum é a submissão a forças que não temos como explicar ou investigar, ou uma postura de humildade que tem como objetivo dar um “pito” no interlocutor. Frases como “quem sou eu (somos nós) para afirmar ou deixar de afirmar sobre esse tema”, ou então “eu faço a minha parte”, “o que podemos fazer é orar por esses irmãos já que o desenvolvimento das virtudes pertence a cada individualidade”, encerram as conversas com um tom paradoxal de superioridade desprendida.

Mais uma vez pergunto – qual sentido disso tudo?

Interpretar os escritos de Kardec (de preferência fora do contexto social do século XIX), interpretar as comunicações de espíritos que produziram dezenas de livros por intermédio de médiuns que tem status de “iluminados” (tanto os espíritos quanto os médiuns), interpretar a Bíblia (infelizmente temos no movimento espírita pessoas que traduzem a Bíblia para fazer estudos aprofundados), leva o espiritismo para onde?

Vejamos mais um exemplo bem ilustrativo – o caso da Escala Espírita. Kardec escreve em 1858 as Instruções Práticas sobre as Manifestações Espíritas, livreto onde, entre outras instruções, estabelece uma escala que classifica tipos de espíritos dentro de critérios de ordem e classes. O objetivo desse didatismo era ajudar as pessoas a analisar as comunicações dadas pelos espíritos, estabelecendo critérios para distinguir o que era sério do era frívolo.

Não se cogitava há 150 anos usar a tal escala para classificar o grau de evolução de pessoas encarnadas. Mas é isso que os oradores espíritas de hoje fazem. Recorrem a malabarismos opinativos, costurando esse e aquele indício que levam a “conclusões definitivas” sobre, por exemplo, o grau de evolução do próprio Kardec. E é em cima dessas opiniões que se montam os argumentos contrários ao retrato humano de Kardec que aparece no recente filme de Wagner de Assis. Parte dos espíritas não concebe um Kardec que seja menos que um apóstolo direto do Cristo e que isso significa obrigatoriamente que ele está a uma distância enorme de nós em termos evolutivos.

A próprio Livro dos Espíritos tem antídotos contra essas “conclusões definitivas”. Na segunda parte do Livro dos Espíritos, capítulo IX – Da intervenção dos Espíritos no mundo corporal, que fala sobre Espíritos protetores, familiares ou simpáticos, fica claro que há flexibilidade nessa relação entre encarnados e desencarnados. Então onde está a verdade? Se ela não é absoluta, ela é inexistente e vice-versa?

Como podemos sair desse nó? Como parar de andar em círculos, nos auto-referenciando e criando explicações mágicas e eternas, dentro de uma doutrina que foi pensada para ser uma construção contínua, que deveria ser atualizada à medida que surgissem novas questões? A maneira de resolver esses dilemas é simples, e Kardec mesmo deu: consultar e controlar o que os Espíritos têm a dizer hoje. Mas no movimento espírita quem faz isso? Cada centro poderia ser um centro de produção de informação nesse sentido, mas quem se interessa?

O Controle Universal do Ensino dos Espíritos (CUEE) não foi pensado para ser aplicado por uma década e depois nunca mais. Era para ser uma ferramenta de uso constante, e ainda que não seja possível aplicá-la hoje exatamente como ela foi desenhada no século XIX, precisamos dela (ou da essência da ideia que dela decorre). Na ausência de critérios racionais, sacraliza-se Kardec, mesmo sem segui-lo direito, e não se vai além. Quando se tenta ir, é só por outra sacralização, mas de médiuns específicos sem maiores testes. Na pós-modernidade do século XXI de opiniões em enxurrada, de notícias falsas, falácias lógicas, destruição de reputações e pós-verdade, precisamos ser céticos e criteriosos. Kardec era.

 

*Agradecimentos a Rodrigo Farias pela insistência em manter o diálogo sempre fluindo

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2 respostas para Kardec, viés de confirmação e ceticismo

  1. Angela disse:

    Avaliação muito oportuna. Aproveito pra colocar uma pergunta? Por que nos dias atuais, as comunicações dos espíritos está sendo praticamente abolida? Os passes são na quase totalidade das casas espíritas, são magnéticos, não é permitido mais a psicologia? Ou seja, a incorporação? Só alguns e muito poucos, podem ter este “privilégio”? Tornou se realmente a doutrina espírita, uma casta de escolhidos? Grande abraço.

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  2. Rodrigo Farias disse:

    De nada. 🙂

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