À memória me vem uma das mais célebres frases de Nelson Rodrigues, o poeta-jornalista, que tanto se dedicou à arte literária de entender o futebol: “O Fla-Flu surgiu quarenta minutos antes do nada”, se referindo ao “clássico” esportivo mais importante do país capitaneado por dois clubes que foram gêmeos na origem, tendo um se desprendido do outro, rompendo o vínculo siamês.
Mas este não é um texto sobre futebol, é um ensaio sobre a (in)tolerância, a mais absoluta incapacidade das inteligências humanas em conviverem como o(s) diferente(s). E no locus da vida atual, contemporânea, com os avanços tecnológicos, o espaço de não-convivência está pontuado e marcado no território – bem hostil – das redes sociais. E se expressa nos fundamentalismos, nos preconceitos de todos os matizes, nas meias “verdades perfeitas” (como na música de Adriana Calcanhoto), nas vãs filosofias, nas teorias dos majoritários, nas liturgias das crenças (mesmo que não haja Igrejas), nos politicamente corretos, nas frases prontas, nas citações oportunistas de livros “sagrados”, nas posições de aparente superioridade como as que decorrem da mais idade, mais tempo de atuação, ou de cargos e nas elegias ou nos réquiens preditos para a(s) Sociedade(s).
Basta!
Os Fla-Flus da atualidade podem ser sobre política, economia, sexualidade, arte, direito, não-direito, espiritualidade, crenças, gostos e preferências e, até, ódios… Também podem ser enquadradas nessas “disputas”, as nossas incapacidades de conhecer, saber, entender, comparar, sopesar… e respeitar! Mas esse respeito se verifica, aliás, dentro de certos “limites”. Respeita-se até que tal ou qual comportamento ou manifesto não “ataque” as minhas teorias, as minhas verdades, os meus esteios. O conforto de uma zona imaginária, uma redoma de proteção que nos faça inatingíveis por algo que possa nos tirar o (do) chão… A quietude (nem sempre silenciosa) do que EU creio, EU penso, EU faço, EU oriento, EU indico, EU venero… Obviamente que todos temos direito às “opiniões pessoais”, de declarar: “eu tenho as minhas idéias e ninguém tem nada a ver com isso”. No âmbito íntimo, interno, isto funciona. Mas quando passa a ser tema de diálogo, em que outra pessoa pode se contrapor ao nosso pensamento, é justamente o palco do conflito. E nem todos estão dispostos a debater, a dialogar para “mudar” suas convicções. Neste Fla-Flu, então, pode haver expulsões de campo…
Mas aqui quero entrar num “nicho” do pensamento humano: a Verdade Espírita, o Espiritismo, a Filosofia Espírita e seus adeptos e, no âmbito da consciência generalizada, a Religião Espírita-Cristã. Como toda e qualquer religião, derivada do pensamento (ou do que se afiançou verdadeiro acerca dele) de Jesus (de Nazaré, que passa, pelas convenções, a ser outro, o Cristo), o Espiritismo tem um agrupamento bastante numeroso de pessoas em nosso país, uma organização local, regional, estadual, nacional, e uma “regência” de uma entidade que “assumiu” o papel de protagonista, há quase 70 anos. Em torno dela – como satélites umbilicalmente ligados ou como admiradores não-alinhados – está o Movimento Espírita Brasileiro (MEB).
O MEB parece, pela expressão que assume entre nós, brasileiros, pela condição de donatário da “mensagem” espiritista, pela submissão de pessoas e agrupamentos institucionais ao seu cajado, e pela condição de penetração, via estruturas de poder ou documentos, ter surgido quarenta minutos antes do próprio O Livro dos Espíritos, esse sim o pontapé inicial da Doutrina dos Espíritos.
Na metáfora rodrigueana, o MEB se acha “mais” ou “maior” que a obra de Kardec! E Kardec de protagonista vira coadjuvante, aquele que “codificou”, que trouxe informações mas que essas já foram complementadas, alteradas, ampliadas pela produção espírita brasileira (de Espíritos e médiuns). Assim, o MEB se arvora em ser uma superestrutura maior que a origem do Espiritismo, atrevendo-se, inclusive a, sem repetir os cuidados metodológicos e sistemáticos estabelecidos por Kardec, a aprovar e divulgar elementos totalmente em dissonância com a raiz espírita. Teriam as regras do jogo sido alteradas? Quem teria autorizado a desancar Kardec do livro de regras espíritas?
Essa ideia do “surgir antes”, então, molda as especificidades e as atividades do “hoje espírita”, porque descarta Kardec, para permitir que sejam considerados como “espíritas”, entendimentos expressos por dirigentes, expositores, médiuns e Espíritos, manifestamente suas opiniões pessoais, como “elementos” complementares e que assumem, deste modo, a condição de verdades espirituais. Essa autoridade que parece brotar do “nada”, que é atemporal, porque se desvincula do ponto zero da Doutrina Espírita, e passa a fazer parte do cotidiano dos espíritas.
É “em nome do Espiritismo” que se tutelam muitas das opiniões presentes em colóquios presenciais, nas instituições ou em eventos espíritas e que, de uma forma mais evidente, estão marcando as discussões e manifestações em redes sociais. E o “espiritismo” passa a ser o que eu “acho” que é (ou que diz) o Espiritismo. Não é mais a diretriz das informações da base kardeciana, mas a ginástica de “conciliar” as minhas teses com as afirmações contidas nas obras de Kardec. Em outras palavras, “molda-se” o Espiritismo ao sabor das opiniões e, não raro, tem-se buscado justificar idéias, opiniões, comportamentos com “frases” pinçadas dos textos publicados por Rivail.
É bem verdade que o Espiritismo permite que nos debrucemos na análise de qualquer temática, a partir dos princípios espíritas, inclusive alcançando aqueles temas de maior importância, apelo ou comoção social, os polêmicos e momentâneos, que envolvem ideologias e opiniões controversas. Neste cenário, seja pelas “orientações” dadas pelas federativas em seus boletins e periódicos, ou de outras instituições respeitáveis dentro do movimento, ou por manifestações de oradores e médiuns em palestras, eventos ou vídeos, assim como pela liberdade de expressão de qualquer espírita, chegamos a um contexto social espírita em que se verificam os seguintes elementos:
1) Nem todos possuem o mesmo nível de estudo e conhecimento acerca das obras de Kardec e dos postulados espíritas originários;
2) Em muitos casos, a leitura e aceitação (tácita ou por conveniência) de outras obras, assim como a filiação ao pensamento de lideranças ou médiuns proeminentes, e suas livres-expressões do pensamento humano, desemboca na inclusão de ideias colidentes com os mencionados postulados, em análises tidas como espiritistas;
3) Como as pessoas não são tábulas rasas e não são, apenas, espíritas, as informações de natureza ideológica, pessoais, decorrentes da formação e/ou experiência dos indivíduos, assim como suas idiossincrasias, fobias, preconceitos, personalismos, etc., acabam influenciando diretamente no modo de expressão das ideias que professam, associando-as a temáticas ou debates “à luz do Espiritismo”; e,
4) A posição – inclusive tratada por Kardec em sua obra – daqueles que são “versados” em muitos temas, de maneira superficial, mas se arvoram na posição de “especialistas”, conceituados pelo Espiritismo como “pseudo-sábios”, que podem exercer alguma dominação e preponderância em relação a muitas pessoas; e,
5) Os “achismos”, derivados da visão pessoal de tudo o que nos cerca e da “mania” de dar pitacos em todo e qualquer assunto, em nome da “liberdade de expressão”.
Todos esses elementos, juntos, formam a teia que caracteriza as relações interpessoais dos espíritas nos dias de hoje. E, como é impossível a neutralidade ou a imparcialidade, que são utópicas, porque nenhuma teoria se sustenta por si só, mas a partir dos esforços interpretativos que as inteligências (encarnadas e desencarnadas) fazem para enquadrar teses nas situações reais, vamos caminhando aos trancos e barrancos, com aquela já demonstrada dificuldade imensa, seja de nos entendermos – inclusive a partir dos múltiplos pontos de vista, interpretativos, que resultam do olhar de cada um sobre dado fato – seja de nos respeitarmos, entendendo que respeito seja não menosprezar, não acuar, não violentar quem quer que seja, porque ela não concorda com as NOSSAS ideias. Agimos como o zagueiro que afasta para longe o perigo e lança a bola com uma “bicuda” (chute forte) para longe, se possível, até, para fora do estádio, para que a mesma “demore” a retornar ao jogo.
Como não há árbitro, que adverte ou expulsa o jogador (participante espírita) mais irritado, e o suspende preventivamente (julgamento do tribunal esportivo) de futuros debates, seguimos nós com o campeonato da Filosofia Espírita em aberto. Não há um “tribunal” para definir as regras dos debates e para dar a “última palavra” em relação aos fatos ou temas. Felizmente! Nem há o “comitê central de espiritismo”, previsto por Kardec para avaliar as “novas produções” à luz dos princípios espíritas, feita por um grupo de pessoas reconhecidas como especialistas em Espiritismo.
Valorizando, sempre, o fundamento trazido por Kardec, do livre exame e do livre pensamento (entendendo que este pensar possa ser, inicialmente, íntimo, “com os seus botões”, sem qualquer externalização, mas pode alcançar, também, a expressão verbal ou escrita, no convívio com os semelhantes e na publicação de artigos, comentários ou outros), enaltecemos todo aquele que se debruça sobre temas que possuem conexão com o Espiritismo e pretendem entender a aplicabilidade dos conceitos espiritistas ao dia-a-dia e suas contingências. Contudo, a base é a base. E ela é Kardec.
Mesmo que ele tenha dito que não haveria o condão de permanência, de absolutismo, de peremptoriedade, de eternidade daquilo que se acha expresso no conjunto de sua obra, tendo proposto aos espíritas: 1) que ficassem atentos às descobertas e progressos das Ciências, observando se estas superam ou não as teses contidas na Filosofia Espírita; e, 2) a continuidade dos diálogos, via evocação, preferencialmente e, também, por meio de comunicações espontâneas, em que fosse perquirido das Inteligências Superiores sobre quaisquer temáticas, complementando, assim, o trabalho de intercâmbio com o Plano Espiritual, que ele iniciou.
Entre a “minha” opinião, entre a “opinião” do outro e, até, um “conjunto” de opiniões, quando muitos endossam determinado pensamento ou tese e as informações contidas na Obra Espírita, a de Kardec, que fiquemos com esta última, a não ser que, pelo pressuposto da Concordância Universal dos Ensinos dos Espíritos, novas ideias e, até, princípios fundamentais do Espiritismo apareçam.
Trilou o apito e um novo jogo começou. Como será o seu comportamento durante a peleja?
Marcelo Henrique
Marcelo, obrigado por compartilhar. Sim, estamos, acredito eu , por comodidade e talvez até preguiça, elegendo novos “Kardecs” como se a doutrina precisasse. Hoje trabalho mediunicamente na Umbanda, mas os estudos sobre o Espirito que Kardec nos apresentou ainda é necessário e único. E claro a metodologia apresentada por ele.
CurtirCurtir