O Brasil, o mundo e o nosso coração humano

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Ontem, dia 21 de abril, dia de Tiradentes; hoje, 22 de abril, dia da “descoberta” do Brasil. E eu estou na Bahia de todos os Santos, mais propriamente na praia de Itapuã – passar uma tarde em Itapuã, ao sol que arde em Itapuã. (Embora em Itapuã também haja dias chuvosos e tristes como hoje). Um fim de semana cheio de brasilidades nubladas. E nesse momento crítico, diria mesmo trágico, em que vivemos nessa nação, não poderia deixar de fazer algumas reflexões que vêm me ocorrendo ultimamente.

Há quem acredite ainda piamente que o Brasil seja “o coração do mundo, a pátria do Evangelho”. A esse respeito, primeiro um parêntese. Não sou daqueles que mitificam as obras mediúnicas de Chico Xavier, como se houvesse a possibilidade humana de termos um médium infalível, quando Kardec disse que o melhor médium seria o que menos se enganasse. Mas também não estou entre aqueles outros que abolem todas as suas contribuições mediúnicas, colocando sua obra inteira na lata do lixo. Aprendi muito com os livros mediúnicos do médium mineiro ao longo de minha adolescência e juventude e alguns leio até hoje com proveito. Mas como todas as obras mediúnicas do mundo, elas devem passar pelo crivo da crítica, devem ser compreendidas dentro do contexto histórico em que foram recebidas, analisando-se também o caráter, a história e a personalidade dos Espíritos que as ditaram. Por exemplo, Emmanuel é um Espírito elevado, instruído, com consistência moral, mas é claro, como bom ex-senador romano e depois, jesuíta, guarda ainda alguns ranços conservadores. Perfeitamente compreensível.

Entretanto, entre os livros que considero problemáticos de Chico Xavier está Brasil, coração do mundo, pátria do Evangelho. Trata-se de uma idealização ufanista da história do Brasil. Foi escrito durante o Estado Novo (leia-se a ditadura de Getúlio) por um Espírito, Humberto de Campos, que estava recém desencarnado e não tinha sido nenhuma pessoa especialmente elevada na Terra. Era um escritor talentoso, mas ácido e com todas as contradições de sua época. Então, trata-se de uma visão mítica, muito particular da História do Brasil, idealizando personagens e situações e essas idealizações estão às vezes longe da verdade histórica. O agravante é que no final do livro há uma menção a Roustaing e à FEB (Federação Espírita Brasileira), louvando aquele e entronizando essa como uma espécie de depositária desse Evangelho da pátria brasileira. Há quem diga que isso foi colocado lá à revelia do médium, outros pensam que não. Não vou entrar nesse mérito. Mas é fato que a FEB se vale desse livro, muito adocicado, acrítico e sem estrita fidelidade aos fatos objetivos da História estudada pelos historiadores terrenos (e a quem compete fazer História são os encarnados), para se erguer como casa mater do Espiritismo no Brasil e no mundo. Sabemos o perigo dessas pretensões institucionais, à moda do Vaticano! E não é o Vaticano de hoje, do progressista Papa Francisco.

Voltando ao Brasil. Hoje sabemos que não houve descoberta, mas invasão; que não houve inocentes trocas de espelhos com os indígenas, mas genocídio em massa dos donos dessa terra; que a história brasileira foi construída na tortura das senzalas, nos privilégios feudais, na transferência da monarquia portuguesa para a monarquia brasileira – enquanto as Américas todas passavam de colônias a Repúblicas. Sabemos que nem os Imperadores e nem todas as sucessivas Repúblicas investiram como deveriam na educação do povo, mantendo até hoje o fosso social que nos faz essa sociedade ainda de privilégios, ainda de extremas injustiças e desigualdades.

Por conta dessa visão mais fiel à história, podemos passar facilmente da idealização de um Brasil missionário do Evangelho e coração do mundo, para a desqualificação completa de nosso país, justificando-se com a amargura de olharmos o momento de desmonte nacional em que vivemos.

Ora, precisamos alargar as vistas com olhar histórico mais acurado. Primeiro, não há país no mundo que não tenha vergonhosas marcas históricas. Temos uma Alemanha supercivilizada que produziu o nazismo; um Estados Unidos, que se proclama a terra da liberdade, mas é um império bélico, que desde sempre atacou populações inteiras, passando pelo Vietnã e pelo Iraque. Isso sem mencionar a escravidão que também foi longa e sombria naquele país e onde, como no Brasil, apesar de todas as lutas, a população afrodescendente ainda sofre discriminação, violências e desigualdade de oportunidades. Quase todos os países da Europa, de Portugal à Inglaterra, da Espanha à França, Bélgica e Holanda, têm seu passado mais antigo ou mais recente manchado por histórias tristes de colonização, com escravidão e matança na África, nas Américas e no Oriente. Na China, havia a tirania dos imperadores, que depois foi substituída pela tirania do Estado maoísta. Em toda a história humana, temos inquisições, genocídios, injustiças, corrupção. Entre muçulmanos e judeus, cristãos e hindus, ateus e confucionistas, encontramos as mesmas violências e as mesmas desumanidades.

E as democracias contemporâneas, salvo três ou quatro pequenos (e também idealizados) países nórdicos, todas são dominadas por corrupções, por lobbies econômicos violentos, por indústrias bélicas que disseminam a guerra por interesse monetário…

E mais do que isso… o debacle do Brasil, que era uma potência em ascensão, interessa e muito ao Império americano. Veja-se, por exemplo, como o petróleo passou rapidamente para mãos estrangeiras. Não que os políticos traidores da pátria não tenham entregado tudo de bandeja. Mas há um contexto mais amplo nessa história a ser desvendado.

O que quero dizer afinal que isso é a humanidade. Não é um país, um Império, uma etnia. É o estágio ainda obscuro em que se encontra grande parte da população terrena, que se deixa dominar e manipular por líderes interesseiros e mídias desonestas, que trazem à tona as forças instintivas do psiquismo humano.

Mas também esta humanidade, em todos os quadrantes, revela pessoas do bem, trabalhando pela paz, pela justiça e pela verdade. Muita gente anônima, mas igualmente líderes honestos e bem intencionados, como Gandhi, Luther King, Mujica, Papa Francisco atuaram e atuam sobre as multidões.

A humanidade é ainda constituída de contrastes entre luzes e sombras; a história se faz entre avanços e retrocessos, em aprendizagens muitas vezes dolorosas, individual e coletivamente.

Há que se ter lucidez e maturidade, que nos impeçam de idealizar alguns e odiar outros. Assim também com o Brasil: nem a idealização melosa de um livro como Brasil, coração do mundo, nem a revolta dos que querem achar que o Brasil é a cloaca do mundo.

E mais, para mudarmos não só o Brasil, mas a humanidade toda (e haja tempo e paciência e por isso não acredito numa “Nova Era” tão próxima), há que se usar não algemas e prisão, castigo e retaliação, mas amor e compaixão e, sobretudo, educação.

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6 respostas para O Brasil, o mundo e o nosso coração humano

  1. Assustou-me muito a existência da obra mencionada “Brasil coração do mundo…”. O tom ufanista e ilógico dos argumentos fez parecer uma espécie de comprometimento do Espiritismo com as forças hegemônicas que não permitem este país se desenvolver de forma emancipatória.Até hoje não entendo o porquê deste livro e o pior de sua divulgação como um corolário.

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  2. LIDIA MARIA DE ANDRADE disse:

    Excelente critica. Tambem não acredito nesta predestinação do Brasil. Não há elevação sem esforço. Não há conquista sem mérito. Essa idéia retratada no livro estimula o brasileiro á inércia e o que é pior: estimula o orgulho, sentimento totalmente contrário aos principios espiritas cristão.

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  3. Beth Itabirito disse:

    Rogo a Deus que essa lucidez germinasse nas mentes da “sociedade espírita” brasileira.

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  4. Adriana Jaeger disse:

    Sou sua admiradora da Dora, do seu trabalho, filiei-me à ABPE e compartilhamos de muitas ideias em comum. Por isso mesmo, por sermos plural e por entender que Dora possui um espírito aberto é que peço licença para discordar. Acredito na missão do Brasil. Não somente pela única fonte, que é o livro do Humberto de Campos, mas por todo conjunto da obra e por todas as evidências de missionários (não do Espiritismo de fora mesmo) que sentiram essa “missão espiritual” do Brasil. É um grande paradoxo, eu sei, pois o Brasil ostenta cifras bastante altas de criminalidade, execuções sumárias, os tais “autos de resistência”, em número alarmante para sermos “patria do evangelho”, mas, ao mesmo tempo, penso que Jesus crucificado tornou Jerusalém famosa para o mundo, não por aceitar o amor do Cristo, mas por sua resistência a ele. Talvez o Brasil precise ser “evangelizado” e na falta de um termo melhor e mais compreensível vai esse mesmo, pois aqui estarão almas devedoras e comprometidas, mas ao mesmo tempo para cá tem migrado almas dispostas a tal tarefa. Temos um coração grande, não dá para negar, precisamos estender, todavia, a todos, colocar todos para dentro, como um coração de mãe, que “sempre cabe mais um” e aceitar a obra de Humberto, não como única fonte, mas como uma das fontes, cruzar dados, e compreender as pistas que a obra nos dá para mudar
    esse estado das coisas. Sua crítica, todavia, é válida e ontem, em sua palestra na 1a Conferência Estadual Espírita do RN, Haroldo Dias, comentava sobre isso, que no Movimento Espírita precisamos aprender​ a compreender melhor a filosofia Espírita, a comparar mais, fazer ajustes finos e tirar suas próprias conclusões, que o Espiritismo educa o nosso raciocinio para que tenhamos mais “dúvidas saudáveis” e o que você fez foi isso é o que todos devemos fazer.

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  5. Ana Quirino disse:

    Na verdade isso me desencanta um pouco. Um sentimento de aflição muito grande.

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  6. Excelente análise! Lúcida, racional e verdadeira! Dora, admiro seu profundo conhecimento da história da humanidade! Parabéns e nos privilegie sempre com este raciocínio claro e limpo! Nos remonta a Kardec!

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