Brevíssimas reflexões sobre o desempenho do Espiritismo no Censo 2022

A redução no percentual dos autodeclarados espíritas no Brasil foi vertiginosa, segundo dados do Censo 2022. Malgrado a queda represente, em números absolutos, apenas 0,4%, em termos relativos, a diminuição é de quase 20%. Esse resultado retrata a posição ultraminoritária do Espiritismo no Brasil – e no mundo.

Diante disso, propomos brevíssimas reflexões sobre as causas que nos trouxeram até aqui e algumas ideias dos futuros possíveis – sem, obviamente, ter a pretensão de esgotar tema tão profundo:

            I – Muito se falou que a queda foi apenas aparente. Nessa seara, é sabido que muitos seguidores da Umbanda e do Candomblé, por motivos diversos que não cabem nesse texto, se autodeclaravam como “espíritas”. O Censo 2022 apenas indicaria uma reversão dessa prática, revelando o real quantitativo de cada matriz religiosa. É uma possibilidade coerente, cujo impacto não pode ser descartado. E que bom que cada um possa ser livre para manifestar suas preferências.

            II – Uma segunda causa que nos parece interessante é a transmutação das lideranças do Espiritismo brasileiro, em sua vertente hegemônica: dos “médiuns santos” para os palestrantes de estilo showman. O médium tinha apelo popular, malgrado os desvios frente à mediunidade tal como proposta por Kardec. Ainda que a mediunidade seja, em essência, um fenômeno universal, o Espiritismo se apresentava com a primazia desse desenvolvimento mediúnico. Não à toa, todo e qualquer médium ser confundido popularmente como “espírita”. O palestrante espírita, em contrapartida, se aproxima muito – chegando ao ponto até mesmo da confusão – de lideranças de outras correntes espiritualistas. Isto é, o Espiritismo hegemônico perdeu seu sinal distintivo na sociedade. Por isso, os “causos do Chico” ou outras histórias fantásticas são propagados à exaustão pela comunidade espírita – a fim de requentar uma proximidade com a mediunidade perdida. Esse é o preço que está se pagando pelas escolhas do passado, por se apoiar toda a racionalidade e lucidez da Doutrina Espírita sobre os ombros de médiuns mortais e falíveis.

            III – Isto nos leva a uma terceira causa, talvez a mais grave entre todas: a perda da essência crítica e racional sobre a realidade espiritual. Assim, ao mesmo tempo em que a mediunidade é idolatrada e hermetizada nos Centros Espíritas (como em uma seita indigna ao século XXI), renuncia-se também à lógica kardequiana. Portanto, perde-se aquela síntese inovadora, fruto reflexivo da tríade filosofia-ciência-espiritualidade. Nesse sentido, o movimento de tese-antítese da fé raciocinada foi preterido em favor de um espiritualismo místico e raso intelectualmente (incongruente com a própria origem do Espiritismo). Ou seja, é um Espiritismo que perdeu seu espírito. Se tudo é místico, se tudo é fé acrítica, se, ao fim e a cabo, o que vale são as boas histórias e o reconforto de cada qual, por que o Espiritismo…?

            IV – O Espiritismo é, de longe – mas de muito longe -, a “religião” com a maior proporção de adeptos com ensino superior. Ainda que sua racionalidade esteja comprometida, o Espiritismo permanece com um viés profundamente livreiro e com verniz de intelectualidade. Assim, em um país onde os professores são tão desvalorizados, onde dá mais dinheiro viver de TikTok que fazer mestrado e doutorado, acaba se criando uma espécie de barreira social à doutrina de Kardec. Isso causa, invariavelmente, um movimento de elitização, de tal modo que o Espiritismo se difunde mais entre altos funcionários públicos, acadêmicos, advogados, engenheiros, médicos etc.

Nesse cenário de alta renda, me parece que há maior interesse pelo Espiritismo como “reforma íntima” do que como fundamento lógico para melhoria da sociedade. Sob o argumento de que “a convicção não se impõe” (tal como escrito por Kardec), muitos se encastelam dentro da Doutrina, ignorando completamente as repercussões sociais do paradigma espírita. Desse modo, muito da intelectualidade e da consistência reflexiva espírita encontra-se enclausurado em petits comités ou mesmo preso em mentes solitárias. Tudo pela “reforma íntima”. Tem-se, portanto, uma espécie de grupo essênio (entre os judeus) ou pitagórico (entre os gregos) dentro do movimento espírita. Uma reprodução de erros do passado.

O Ministro Eros Grau, eminente jurista, costumava afirmar que “a Constituição não se lê em tiras”. Tomo a liberdade de aplicar a mesma lógica à obra de Kardec. É evidente que a convicção não pode ser imposta – até porque, o Espiritismo é uma doutrina de liberdades e responsabilidades. Mas também nos parece claro que, em uma leitura sistemática das páginas kardequianas, cada espírita tem o compromisso moral de tentar melhorar o mundo (não é o tal princípio da evolução?). Acontece que há um certo conflito de interesses, no qual muitos intelectuais espíritas têm dificuldade em criticar minimamente o mundo injusto que lhes favorece.

            V – Parece-me, ainda, que os resultados do Censo 2022 subestimam sobremaneira a relevância do Kardecismo na sociedade brasileira, em decorrência de sua característica de “religião natural”. Sobre o assunto, sabemos que muitos católicos (e até mesmo evangélicos) creem, em seu âmago, na reencarnação. Há ateus acreditando em “energias” e mediunidade. E por aí vai… Em suma, quando o calo aperta, é na porta do Centro Espírita que o brasileiro vai bater. Assim, o Espiritismo é a “segunda religião” de muita gente – dentro desse estilo bem tupiniquim de levar a vida.

            VI – Por fim, acredito válida a reflexão se o Espiritismo está em consonância com seu período histórico. Questiono-me se a proposta de Kardec não era muito vanguardista para o tempo dele e para o nosso. Sem o intuito de parecermos imodestos, assim como Comenius foi um iluminista prematuro (e pagou o preço disso), reflito também se Kardec não estaria antecipando um movimento que só ocorrerá séculos à nossa frente.

Alexandre de Assis

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