Rolam as cifras, jorram as águas

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Não sei se o fato se repete entre o povo espírita de outros estados, mas no movimento espírita do RJ, estado onde nasci e resido, é muito comum cantarem a canção “Brasil, terra da esperança”, composta por Haroldo Mendonça. Segue a letra:

Você reclama do seu país
Mas já parou pra pensar
Que terremotos não há,
Nem vulcões, furacões
Terra abençoada pelo céu
Coração do mundo,
Dona do pão e do mel.

Eu sei que a dor é grande
Mas a batalha é da gente
Plantar agora a semente,
Bem cuidar dessa flor
Verdadeiramente brilhar
Nossa luz interior.

E lá no céu azul, a marca da vitória,
Cruzeiro do Sul
Quem tem amor não cansa de amar o Brasil
A terra da esperança, da esperança.

Brasil!

A canção é fortemente calcada no livro “Brasil, coração do mundo, pátria do Evangelho”, ditado pelo espírito Humberto de Campos e psicografado pelo médium mineiro Chico Xavier na década de 30 do século passado.

Não vou entrar no mérito de discutir se o Brasil é ou não a tal pátria e coração. Em primeiro porque não sou profundo conhecedor da obra, que li uma vez na década de 80, achei esquisita e nunca mais me interessei em folheá-la. Talvez eu precise fazê-lo para reforçar meus argumentos. Em segundo porque há vários e ótimos artigos de articulistas espíritas mais abalizados que eu. Todos provando que a referida obra não condiz com a história e nem com a realidade do país. Meu objetivo é concentrar-me na questão ambiental e urbanística.

A letra da música dá a entender que não devemos reclamar do país porque, afinal de contas, aqui não há terremotos tragando edificações, vulcões cuspindo lava e furacões varrendo tudo que encontram pela frente. Isso bastaria para o Brasil ser uma terra abençoada pelo céu. Céu?

No livro “O Espiritismo é Pop”, de minha autoria, há um artigo intitulado ‘Leis morais e planejamento urbano’. Nele, chamo atenção para o pito que o Brasil tomou da Organização das Nações Unidas (ONU) quando da tromba d’água que ceifou a vida de cerca de 1000 pessoas na Região Serrana do Estado do Rio de Janeiro. Na ocasião, uma reportagem veiculada pela Agência Estado revelou que a referida tragédia figura “entre os dez piores deslizamentos dos últimos 111 anos” e que tais fatos lamentáveis se repetiam no país por falta de vontade política e de investimentos. Ausência de planejamento urbano, em suma.

Margareta Wahlström, então subsecretária-geral da ONU para a redução de riscos e desastres e autora da bronca que o Brasil levou, salientou, na ocasião, que o país poderia ter evitado grande parte da tragédia se houvesse monitoramento de áreas de risco; sistemas de alerta; abrigos predeterminados para receber a população; proibição de construções em encostas e margens de rios… Por minha conta, acrescento políticas públicas de saneamento básico, reordenamento do espaço urbano, moradia digna, coleta e descarte adequado de lixo reciclável e não reciclável etc.

Lá se vai quase uma década desde a tragédia que desalojou e enlutou famílias em cidades como Nova Friburgo, Teresópolis, Petrópolis e São José do Vale do Rio Preto. A história, contudo, se repete todos os anos, nos verões brasileiros. O Sudeste costuma ser a maior vítima. No entanto, estados do Sul e do Nordeste também já passaram por traumas ocasionados pela soma macabra de injustiça social com falta de planejamento urbano. Vidas perdidas, rios fétidos transbordando água imunda, casas alagadas, móveis e eletrodomésticos perdidos, carros sendo arrastados, moradores soterrados, gente simples tendo de recomeçar do zero… Geralmente, os veículos de comunicação põem a culpa no tempo e falam das tragédias ocasionadas pelas chuvas. Mas se o Brasil fizesse o dever de casa, as águas de janeiro, fevereiro ou março talvez causassem danos mínimos ou nulos. A tragédia maior ocorre por irresponsabilidade humana mesmo.

Leio no jornal “El País” que as recentes chuvas e deslizamentos na Baixada Santista já contam com 39 mortos e 41 desaparecidos; um número que pode ser três vezes maior que a tragédia ocorrida em Mariana (MG), quando uma barragem se rompeu em 2015. Estatísticas que não cansamos de colecionar, infelizmente.

O Brasil não possui terremotos, vulcões e furacões, mas possui enchentes, trombas d’água e deslizamentos de encostas, que são tão letais quantos as demais hecatombes das quais muitos brasileiros (espíritas, inclusive) se vangloriam de não afetarem a Terra Brasilis. Por isso, é mais que urgente serem tomadas medidas para proteger a população e evitar as constantes tragédias de verão.

Fico pensando o caos que seria se vulcões, terremotos e furacões fossem recorrentes por aqui. Além disso, convém ressaltar que os países vitimados por esse triunvirato da natureza estão, na maioria, preparados para evacuar, socorrer e abrigar a população; optar por construções que suportem ou aliviem os impactos; reconstruir tudo em tempo recorde etc. Aqui é a gambiarra de sempre.

Temos no país a consequência de uma trajetória marcada por crueldades sociais. Somos uma nação rica, mas historicamente explorada por mercenários e especuladores. Um país que sempre fez questão de ignorar os socialmente carentes, empurrá-los para as ditas periferias e desprovê-los de seguridade social. Lamentável! Por isso, impossível não reclamar. Crer que não haver terremotos, vulcões e furacões seja motivo para julgar que estamos numa Canaã prometida soa a muita ingenuidade. Na boa.

Eu sei que a dor é grande e sei que a batalha é da gente, como diz a canção. No entanto, a dor seria menor e a batalha, melhor de ser travada se boa parte dos espíritas fosse bem menos onírica e bem mais aguerrida; bem menos ingênua e bem mais lúcida; bem menos acomodada e bem mais pé no chão.

Nada contra o cancioneiro espírita. Gosto da maioria das canções. Quando, todavia, em algum evento, o povo começa a cantar “Brasil, terra da esperança”, eu opto pelo silêncio por discordar do argumento por ela apresentado e também em respeito às constantes vítimas das águas turvas que jorram impunes.

Marcelo Teixeira

  • AGÊNCIA ESTADO. ONU: deslizamento no RJ está entre 10 piores do mundo. exame.abril.com.br, São Paulo, SP.

Jornal El País, 06/03/20. Disponível em brasil.elpais.com/brasil/2020-03-06/com-31-mortos-e-39-desaparecidos-tragedia-na-baixada-santista-pode-ser-tres-vezes-maior-que-mariana.

  • MAGRI, Diogo. Com 39 mortos e 41 desaparecidos, tragédia na Baixada Santista pode ser três vezes maior que Mariana.
  • ROTHIER, Bianca. Falta de planejamento fez chuva no Brasil matar mais que na Austrália, diz especialista da ONU. BBC Brasil / Folha de São Paulo, 13/01/2011, uol.com.br. São Paulo, SP.
  • TEIXEIRA, Marcelo. O Espiritismo é Pop. Ceac, 1ª Ed., 2015, Bauru, SP.
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2 respostas para Rolam as cifras, jorram as águas

  1. André Castanheira disse:

    Excelente reflexão.
    Haveremos de perdoar os Espíritos espíritas, pois estão ocupados estudando: data limite e a transição planetária; “trabalho” de desobsessão; umbral; etc.
    Perdoai-nos Senhor, pois não sabemos pensar!

    Curtido por 1 pessoa

  2. reginacscgmailcom disse:

    Finalmente bom senso! Colocar o Brasil como pátria da paz e esperança é cegueira social. O espiritismo “oficial”, aquele da aceitação das injustiças prega a paz dos cemitérios, desumano e elitista. O Brasil é um país riquíssimo, onde a miséria do povo gera lucros para os poderosos. Que os bons espíritos olhem por nós, parte da imensa maioria que ainda sobrevive de garra e persistência, enquanto uma elite desumana esbanja e desperdiça!

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