No Manifesto por um Espiritismo Kardecista Livre de janeiro de 2019, há um item que aborda a questão da ética espírita que deve orientar nossas ações individuais e coletivas. Definida como a do amor universal, inspirada em Jesus, nos chama à necessidade de marcarmos posição contra a violência de qualquer espécie, de trabalharmos pela dignidade humana, pela justiça e de combatermos o abuso e a sujeição de pessoa em relação a outras, de qualquer idade ou condição, pois, como espíritos criados e em evolução, temos o mesmo começo e o mesmo fim.
Mas se somos irmãos por criação (entende-se aqui filhos de mesmo Criador), por que há ainda costumes e sistemas suportados pela humanidade que não consideram a fraternidade e a responsabilidade de uns pelos outros como fundamental? Por que não respeitamos dignidade humana em todos os campos do sentir e do saber? Essas perguntas são essenciais no dia a dia de alguém que está interessado em ver uma transformação real desse mundo, principalmente se tal pessoa olhar esse mundo pelas lentes do Espiritismo de Kardec.
No Livro dos Espíritos (LE), onde Kardec elabora uma síntese de suas pesquisas do mundo espiritual, utilizando o método de perguntas e respostas, abordam-se tanto temas que atribulavam o íntimo das pessoas, como os grandes problemas de ordem social e da organização da sociedade.
Na leitura do LE fica claro que o espírito evolui individualmente, porém seu progresso se dá com o outro e em relação ao outro, em sociedade. Os espíritos em sua evolução, pelas reencarnações, atuam conforme seus contextos (de espaço e tempo) fazendo a sociedade também avançar tecnológica, filosófica e moralmente. Portanto o meio influencia o espírito assim como o espírito influencia o meio, e a interação entre o indivíduo e a sociedade promove a evolução.
Há diversas leituras sobre a atuação do espírita na sociedade nas obras de Kardec, principalmente por interpretações ligadas a Lei de Causa e Efeito no LE. Mas antes de qualquer ponderação sobre isso é preciso reforçar: nada em Jesus ou Kardec entende as desigualdades sociais como necessárias, já que somos iguais ao sermos criados e seremos iguais no fim da jornada evolutiva. As diferenças entre nós são criações dos espíritos encarnados e não de Deus.
O mecanismo de Ação e Reação (tanto sobre situações positivas quanto negativas) pode ser entendido de forma simplista ou de forma complexa. A interpretação mais rasa é o olho por olho, dente por dente, ou aqui se faz, aqui se paga. Em sucessivas vidas essa compreensão rasa pode levar a conclusões do tipo morreu no incêndio porque em outra vida foi um incendiário, sofreu abuso porque foi abusador, foi assassinado porque matou. Os problemas desse entendimento são o punitivismo, o fatalismo e a culpabilização da vitima, que destoam completamente da ideia de Jesus do amor que cobre a multidão de pecados e perdoa a todos. A mesma análise rasa leva à ideia de meritocracia.
Na sociedade ocidental, a ideia de meritocracia está associada à prosperidade. Se na disputa empreendedora o valor está no trabalho, nas religiões está no pertencimento a um grupo especial que está acima dos outros. Tanto na sociedade quanto nas religiões a meritocracia é uma ideia falsa porque não entende que não partimos dos mesmos contextos e condições (na sociedade) e que somos todos filhos da mesma Criação (no caso das religiões). Aqui nascem ideias superficiais como a de que se a pessoa é espírita ela tem mais evolução do que os que não são espíritas, porque tem uma compreensão ampliada da realidade. Muitas vezes juntam-se os dois espectros (positivo e negativo) num discurso que ao mesmo tempo nos coloca acima das massas e nos julga como “caídos”, merecedores de punições. Uma dicotomia (sadomasoquista) que apenas escancara as fragilidades emocionais que alimentam uma moral distorcida.
A compreensão mais complexa da Lei de Ação e Reação é que ela é um processo contínuo onde a Reação é a também uma Ação que vai levar a uma outra Reação que também é uma Ação, e assim por diante. O que chamamos de “erro” é um passo essencial na construção do que chamamos de “acerto”, e é portanto indispensável. Se sou assassinado posso perdoar. Se cometo um assassinato posso me arrepender. Perdoar e se arrepender são escolhas, são ações deliberadamente tomadas. Mas também são reações nossas diante de circunstâncias, contextos sociais, suporte afetivo, etc. Nossas escolhas (ações e reações) são também influenciadas pelo meio ao mesmo tempo que influenciam esse mesmo meio. E se o contexto (meio) importa, temos que transformá-lo ativamente (por nossa ação deliberada).
Dito isso, a evolução de cada um não pode ser vista ou entendida como um prêmio individual e que as misérias do mundo sejam justificadas na conta da Lei de Ação e Reação, que faria cada qual sofrer porque tem que sofrer. A evolução é mais intrincada do que a frágil ideia de meritocracia e do que o simplismo de que cada qual colhe segundo suas obras. Essas duas ideias, na verdade, mascaram uma infinidade de problemas. A primeira (meritocracia) coloca em perspectiva apenas um recorte da vida de alguém, não aborda toda a existência de quem julga e de quem é julgado, dessa forma, qualquer ideia de superioridade é superficial. A segunda, que na verdade é um desdobramento da primeira, de que se a pessoa sofre é por que tem que passar por isso para aprender, é uma interpretação rasa de como se processa a evolução do espírito. Aquele que usa esse argumento diz, em outras palavras, que Deus usa o mal promovido por alguém para punir o suposto mal dos outros. Essa justiça divina que assim projetamos é, na verdade, ainda a nossa ideia de justiça que tem mais de punição do que amor e misericórdia.
Em relação a Jesus sobre igualdade entre todos e sua atuação nesse tema, ele foi retratado em constante embate com o poder constituído, com as instituições e os costumes, principalmente, discriminatórios em relação aos pobres, mulheres e mesmo crianças. Não se vê Jesus nos evangelhos virando as costas para sofredores, ela agia na assistência individual e na mudança da sociedade sempre que em contato com os donos do poder. Os valores deixados por Jesus quando encarnado, indo bem além das redomas das religiões cristalizadas, foram e são motes de grandes revoluções e avanços sociais no mundo.
Concluindo, a partir dos argumentos acima, o espírita não pode se eximir de uma atuação a favor de que a sociedade acabe com sistemas de poder que promovam a exclusão, a diferenciação das pessoas, que impeçam o acesso universal a direitos universais, que negligenciem as liberdades individuais. A atuação do espírita na sociedade é política (não necessariamente partidária), de forma que os sistemas se adequem às necessidades de todos, e não que as pessoas se adequem aos sistemas para o bem de alguns.
O engajamento individual em causas ligadas à igualdade, à liberdade e à fraternidade é o caminho para melhorarmos a sociedade e promovermos a evolução individual conforme reconheçamos mais e mais a irmandade entre nós.
Alexandre Mota
Parabéns pelo texto. Está cada vez mais difícil adotar esse tipo de posicionamento no Brasil.
Mas sigamos, sem perder as esperanças.
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Então, gostaria q o autor do texto propusesse ao movimento espírita brasileiro um abaixo assinado contra os regimes tirânicos impostos a Cuba, Venezuela, Coréia do Norte, China e Rússia… países onde o sistema de governo democrático foi extirpado faz décadas… vivem sob regime partidário único, “líderes” (virou eufemismo para ditadores!) vitalícios e população em condições de absurda desigualdade…! Que tal?
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A ética de Jesus e do kardecismo, como propostas e analisadas no texto, coloca-nos a responsabilidade de irmos contra qualquer transgressão contra a liberdade, a igualdade e a fraternidade. Somos irmãos. Não entendi sua colocação! Não há no texto defesa de qualquer sistema de governo, defende-se olhar o próxio como seu irmão de fato e lutar para que todos, como irmãos, tenham amor, proteção, oprortuidades e que para tanto será necessário ir contra tudo que não esteja direcionado a isso, entre eles sistemas de governo que só privilegiam alguns. A visão não é o sistema, o olhar a ser treinado é o próximo.
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O problema é que o “próximo” não vive em um espaço isolado, mas em sociedade, junto a outros indivíduos. Portando, é muito diferente “olhar” (seja lá o que isso signifique) o próximo numa sociedade em que predomina o Estado de Direito, e você tem liberdade de expressão, de debater e discordar, e tentar praticar isso num ambiente discricionário, onde quase tudo é vigiado. Dito isso, a observação de Apinas é bastante pertinente.
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Não to entendendo qual a relação do texto com a defesa de regimes totalitários e ditaduras de esquerda como indica o comentário do Apinas. Dá pra explicar aí Apinas?
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O Alpinas é um conservador e não admite que princípios cristãos, espíritas, estejam intimamente ligados a pauta de luta das esquerdas. Talvez por se tratar de um curioso sem maior interesse em aprofundar o conhecimento. Também não entendi a ausência de Estados Unidos e Israel no rol dos regimes “tirânicos”. Interessante!
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Israel tirânico? Vái pesquiisar. E os países árabes, notadamente autoritários, que não aceitam a existência de Israel, e usam os palestinos como massa de manobra para os seus interesses?
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Roque, ainda que você possa olhar para o Oriente Médio e entender que não existam “mocinhos” nesse “filme”, a expansão territorial agressiva de Israel que ocorreu no instante seguinte a criação do Estado de Israel, e a superioridade bélica do judeus na região, os coloca na posição de imperialistas.
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Do mesmo modo as nações árabes são imperialistas a maneira delas, pois também possuem interesses territoriais e influência política nos países vizinhos. Assim como podemos ver a expansão do Islã desde o século VII como um tipo de imperialismo, análogo ao romano, pois além da necessidade de pregar a nova fé, também havia o desejo por terras, riquezas e mão de obra escrava. Há que se diferenciar a necessidade de Israel defender seu território e povo, que pode acarretar excessos criticáveis, e os ataques terroristas, que muitas vezes usa civis palestinos como escudo, daí a enorme mortandade. Além do mais, Israel é uma nação democrática, com liberdade para a oposição criticá-la, o que não ocorre nos países árabes e muçulmanos de forma geral. Curiosamente, a segunda maior parada gay ocorre em Israel, o que seria algo impensável nos seus vizinhos muçulmanos.
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Me refiro aos ataques do Hamas, Hizbollah, Jihad Islâmica palestina entre outros…
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