Entendo que o problema da “tal pureza doutrinária” é mais complexo em sua dimensão humana do que em suas questões epistemológicas, uma vez que se relaciona com o ponto mais delicado da experiência e da aprendizagem humanas: o afetivo e o intelectual. A relação entre esses elementos desponta como um desafio secular para nossa condição humana e civilizatória, principalmente nestes últimos séculos de reconfiguração de uma sociedade medieval, controlada por afetos como o medo e a fé, cujo resultado mais direto é a ignorância, para uma sociedade moderna/contemporânea, dominada pela técnica e pela racionalidade, de onde emergem o individualismo e a objetificação do ser humano. Não é difícil ver-se que a questão do equilíbrio, já tão bem apontada por Buda, Aristóteles e Jesus, com suas propostas: “caminho do meio”, “justo meio” e “porta estreita”, é uma das mais importantes ferramentas para nosso próprio desenvolvimento a ser compreendida e estruturada em nossas vidas. Sem o equilíbrio entre essas duas dimensões de nossos potenciais – intelectual e afetivo – não haverá, a meu ver, a transcendência dos padrões históricos que têm sido perpetuados por nós mesmos em nossas memórias interexistenciais, refletindo na cultura, nossa obra coletiva (porém, não planejada).
Mas como se tem demonstrado difícil para nós, aparentemente até impossível, a construção de uma postura de equilíbrio entre afeto e intelecto diante de nossas questões humanas! Inconscientemente, temos projetado em tudo o que criamos ou fazemos as limitações não superadas da nossa própria condição de cisão, ou baixa integração, entre esses dois atributos resultantes de nossa evolução anímica. Nossa ciência, filosofia e religião (para me ater aos aspectos que foram projeto do Espiritismo), sofrem o impacto direto dessas projeções. Só não conseguimos mesmo afetar os missionários com esta nossa, chamarei, imperfeição crônica e aguda; contudo, afetamos diretamente a obra por eles deixada, tendo em vista o momento em que já não estão aqui para a defender de nossas interferências recorrentes.
Eis o problema verdadeiro da “pureza doutrinária”, a meu ver. Eles, Jesus (em escala muito mais ampla) e Kardec, por exemplo, por terem uma melhor integração entre suas dimensões afetivas e intelectuais apresentam e expressam o conhecimento da chamada Verdade Divina de maneira mais perfeita e, portanto, em uma mais exata condição de equilíbrio. É a condição evolutiva deles projetada na própria obra.
Já nós, como pouco ou quase nunca conseguimos harmonizar as nossas dimensões afetivas e intelectuais, seja no aspecto coletivo ou individual, projetamos tal cisão em tudo o que fazemos. Em nós, o saber dificilmente se equilibra com a compreensão dos limites desse saber. Quando partimos para o conhecer, passamos a excluir os que não conhecem como nós conhecemos. Por consequência, entramos num paradoxo: defendemos um saber e para isso negamos a existência daqueles que não sabem como sabemos, mas o saber só tem sentido e fundamento no ser. Negar o ser pelo saber é negar o único lugar em que o saber se efetiva. E isso é muito grave, porém não exclui o problema do conhecimento. Preservar alicerces que sustentam a coerência, a racionalidade e a consistência de um pensamento sem com isso impedir o diálogo e a aproximação com o outro, e concomitantemente, ter cuidado para que esse diálogo não decomponha ou reduza tais alicerces, comprometendo o pensamento em questão. Eis o equilíbrio que penso necessário para este caso.
Pergunto, há um seletivismo na leitura e na prática do Espiritismo? Acredito que obviamente há. Penso não haver discordância sobre isso e cada um se justificará com boas doses de razão. A minha, justifiquei acima. Em função dos elementos afetivos, basicamente inconscientes, e intelectuais próprios de cada indivíduo, vamos nos apropriando do que seja ou não seja, deva ou não deva ser uma determinada ideia, em nosso caso, o Espiritismo. O ponto mais crítico a meu ver, dessa forma, é que não vemos, não nos damos conta de que em nossa apropriação intelectual escoa um universo amplo de afetos (ou emoções) pouco percebidos por nós, mas que determinam sobremaneira nossa leitura do Espiritismo e o como nos relacionamos com a leitura dos outros sobre este. Esse mecanismo afetivo mal compreendido é que nos impede o diálogo. Pergunto, qual seria ou quais seriam tais afetos?
Distante de querer responder, apenas indico que o resultado disso seria algo que eu chamaria, apenas para tentar me fazer compreensível, de “ilhas-de-sentido”, onde vamos nos isolando, alimentados pela experiência subjetiva, que está carregada desta cisão afeto-intelecto e, pior que isso, pela má compreensão disso em nós mesmos. Não que o Espiritismo esteja destituído de alguns ou muitos aspectos de caráter objetivo, muito questionados, assim como na Ciência como um todo, mas em nossas defesas intelectuais de algo não existem só ideias e rigor sistemático de análise, mas afetos inconscientes para nós. O problema que enfrentamos, pois, não está na “ideia que eu defendo”, mas no afeto que eu expresso em tal defesa, sem me dar conta, por exemplo, de minha própria paixão ou apego à minha maneira de apreensão desse saber. Sorrateiramente, tais afetos reforçam a definição do que seja o Espiritismo para cada indivíduo, que se vai isolando dos outros indivíduos que não lhe apreendem ou compactuam com a sua percepção.
Minha hipótese é de que estamos no mesmo movimento psicológico atávico inconsciente de sempre, em nossas relações com o que seja o diferente, ou seja, com o próximo que nos aproxima do diferente, do alheio a mim. Tudo isso, a meu ver, apenas aponta uma direção, que seria um primeiro passo para a resolução. Essa, compreendo que seria o engajamento coletivo, pelo menos daquilo que se passou a se chamar de lideranças espíritas.
Temos que enfrentar com instrumentos eficazes “o atavismo que carrego comigo”, “a minha rigidez”, “a minha indisposição com o outro” (entendido como o diferente). Não “queimamos” mais ninguém, é certo, todavia desconsideramos, anulamos, silenciamos e recebemos o mesmo tratamento. Tem sido da nossa condição ainda e só será superado pela vontade e a determinação de trabalharmos isso em nós. Querer julgar que só nós somos rejeitados como se não rejeitássemos o outro é um despautério de ausência de conhecimento de si mesmo, onde se desconhece o dinamismo dos afetos em nós, gerenciando nossa maneira de nos relacionarmos com o outro.
Uma possível causa, acredito eu, para os problemas que foram emergindo para o Espiritismo [e advirto, sem medo, que o problema grave do Espiritismo somos nós, caso ainda tenhamos alguma pretensão de descrer que não seja assim], não está propriamente no fracionamento ao qual o movimento espírita foi se lançando após os falecimentos de Kardec e de Léon Denis, mas na intemperança, no descomedimento e na imoderação contínuas na maneira como reagimos ao lidar com esse fenômeno de fracionamento que tem seus determinantes.
Quem esteve realmente disposto a compreender e apostar no diálogo a ponto de suspender temporariamente ou mesmo questionar e reavaliar sua própria maneira de conduzir o Espiritismo? Quem assumiu ou assumiria uma tal abertura para ouvir, discernir e construir com seus pares as bases desse equilíbrio de maneira respeitosa, cordial e prática, suportando os revezes para consolidar critérios de bom senso inteligível a esse coletivo, que estivesse em uma instância diferente das nossas propostas individuais e de cada grupo? Utopia? Talvez. O próprio Espiritismo é um dos seus maiores exemplos. Concluamos.
A “pureza doutrinária”, na minha visão, nasce reativamente por parte de alguns, como um natural sistema de defesa contra a multiplicidade dos sentidos e práticas dadas ao Espiritismo por seus adeptos. Acredito que importa muito saber (construir tal conhecimento) por qual razão a complexidade que emergiu do contato do povo brasileiro com o Espiritismo foi tratada tão somente com um projeto de defesa da “pureza doutrinária” e não com um amplo projeto coletivo de busca de entendimento mútuo. Quando o chamado “Pacto Áureo” (iniciado em 5 de outubro de 1949) se demonstra incapaz de atender à heterogeneidade do denominado “movimento espírita”, por que apenas desistimos e não lutamos ardorosamente para construir uma tecnologia capaz de nos possibilitar um congraçamento real? Ficamos ilhados diante das rejeições, das incompreensões e dos julgamentos, reagindo, quase sempre, da mesma forma. A velha dificuldade em se relacionar com o outro é a dor da rejeição. Isso é memória, isso é a atávica forma de lidar com tudo quanto aponte para o enfrentamento das diferenças.
Esse sistema de defesa necessário até certo ponto, mas limitado, ao mesmo tempo que tenta defender elementos importantes de serem protegidos no campo doutrinário – e acredito que foi o que aconteceu – pode ter sido também responsável por intensificar em nossas relações humanas a descrença e o descrédito pelo outro. A tal ponto que se crê insuplantável o distanciamento que criamos em nossas relações, que cada vez mais se indispõem a um projeto amplo e democrático (entendido não como unificação, mas sim como diálogo).
Somos espíritos em evolução e não será possível – eis a absoluta alucinação – leituras e práticas hegemônicas em um dado momento evolutivo, antes da pureza completa de nosso espírito, e talvez nem neste momento. A hegemonia de nossas relações uns com os outros deveria ser de incansável amor, mesmo que haja uma forte crença em nossos pontos de vista. Viveríamos mais dentro do “posso não concordar, mas consigo manter uma escuta ativa e participativa dentro do seu pensamento, busco entender suas intenções. Discordo, muitas vezes, entretanto não te lanço nos vales de leprosos junto aos impuros que não devem infectar minha pureza”.
Falta educação real, afetiva e democrática para nós espíritas, sem o que seremos, atavicamente, o vivo e ativo sintoma da igreja de sempre.
Ao terminar de escrever estas linhas, me vem à tela mental Jesus, que não abandonou ninguém, não excluiu ninguém. Relacionou-se com todas as diferenças, da ignorância à intelectualidade, da brutalidade à traição, sem colocá-las como o centro das questões do seu trabalho com a Boa Nova. Tolerou absurdas desavenças entre seus próximos e pediu para Pedro embainhar a espada. E ele é o Modelo e o Guia que ainda não entendemos e não seguimos.
Vinícius Henrique Araújo Carvalho
Trabalhador espírita.
Dos comentários inteligentes do Vinícius, destaco dois pontos positivos a merecer desdobramentos: o diálogo a ser privilegiado e jamais excluído das relações humanas e a incapacidade das instituições espíritas de aceitar as diferenças; e destaco, também dois pontos negativos: o esquecimento de que em espiritismo o bom senso é o balizador da verdade, portando, deve ser considerado quando das análises e opiniões acerca dele, e a visão de Jesus por ele manifesta, que incide na crítica mesma que Vinícius manifestou no seu texto, visão que o vê idealisticamente e não do ponto de vista da materialidade do pensamento e das ações de Jesus, afetivo e viril ao mesmo tempo, exaltando averdade e condenando a mentira.
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Adorei o texto. Nos permite várias reflexões. Parabéns Vinícius Carvalho. Que você continue sensível ao auxílio dos Bons Espíritos e impulsionado pela Verdade permaneça no trabalho cristão…auxiliando-nos na expansão do pensamento e na educação dos sentimentos! Abraços fraternais.
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O texto diz tudo por si só sobre o assunto. Ressalto o sentido de que o mais importante do que pureza doutrinaria é a pureza do “doutrinador”. Paz do Cristo.
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