Entre o Espírito e a Razão: fenômenos medianímicos e a fidelidade a Kardec

(Para Dora)

Kardec já advertia: “Não podemos nos esquecer de que estamos nos primórdios da ciência e que ela está longe de haver dito sua última palavra sobre esse ponto, como sobre muitos outros” (KARDEC, 2004). Essa citação, extraída de “O livro dos médiuns”, evidencia a humildade epistêmica do fundador do espiritismo, que reconhecia as limitações e a transitoriedade do conhecimento científico em sua época. No entanto, setores mais ortodoxos do movimento espírita, especialmente no Brasil, tendem a cristalizar os escritos kardequianos como se fossem escrituras sagradas e infalíveis, ignorando o avanço técnico-científico dos séculos XX e XXI.

A mediunidade, conforme apresentada por Kardec, é um fenômeno psíquico — ainda que ele especulasse sobre bases orgânicas — em que as fronteiras entre o mundo interno do médium e o campo extrafísico (ou espiritual) se tornam difusas. Nesse sentido, é mais adequado utilizar a expressão “fenômenos medianímicos”, como o próprio Kardec adota em diversos momentos, para abranger a complexidade do processo comunicativo entre as dimensões espiritual e material (KARDEC, 2004).

A abordagem kardequiana, longe de se fixar em uma compreensão dogmática, prioriza a dimensão moral e utilitária dos fenômenos mediúnicos. Kardec enfatiza o valor prático do espiritismo em proporcionar consolo aos aflitos (especialmente diante da morte) e lições de virtudes. Para ele, a identidade do espírito comunicante tem importância secundária em relação ao conteúdo ético e ao benefício coletivo (ética das virtudes) que a mensagem pode proporcionar. O próprio prof. Rivail reconhece as dificuldades em validar a identidade espiritual, apontando a análise hermenêutica da coerência discursiva, da razoabilidade e das inferências lógicas-morais como os únicos métodos possíveis de aferição (KARDEC, 2004). Mesmo fenômenos como a vidência devem ser tratados com prudência, dada a possibilidade de distorções subjetivas.

Essa postura epistemológica de Kardec aproxima-se de correntes filosóficas contemporâneas que valorizam a provisoriedade do conhecimento e a abertura para novas investigações. Já na filosofia empirista de David Hume (1711-1776), além de uma belíssima defesa da religião como sendo a manifestação da Natureza, encontramos também uma forte argumentação sobre a limitação das capacidades humanas em atingir certezas absolutas, sustentando que nosso conhecimento é sempre contingente e baseado em experiências sensíveis (HUME, 2016). Richard Rorty (1931-2007), em sua crítica ao fundacionalismo, típico do dogmatismo e de uma parcela das ciências exatas e naturais, propõe uma concepção de conhecimento como um processo dialógico e em constante revisão, no qual a verdade não é um reflexo espelhado da realidade, mas um acordo intersubjetivo que pode ser reformulado diante de novas evidências (RORTY, 1994). Gianni Vattimo (1936-2023), por sua vez, defende a ideia de “pensamento fraco”, uma abordagem hermenêutica que rejeita verdades absolutas e acolhe a pluralidade interpretativa em diálogo com valores de humildade epistêmica e caridade sociopolítica (VATTIMO, 2018).

Quando se fala em pensamento kardequiano nesse contexto em que estamos, torna-se evidente a tensão entre essa perspectiva aberta e progressista e o tratamento que grande parte do movimento espírita brasileiro, bastante religioso, confere aos textos de Kardec. Em muitos círculos, a obra kardequiana é interpretada com um viés de devoção, literalidade e inerrância, em flagrante contraste com o espírito iluminista que orientava o próprio Kardec e sua proposta de um espiritismo fundamentado em investigação e revisão contínua. Hoje, poderíamos inclusive aproximar as investigações espíritas de uma concepção científica menos eurocêntrica, mais pluralista e embasada nas epistemologias do Sul Global (SANTOS & MENESES, 2009). Por que não?

Portanto, a fidelidade ao pensamento kardequiano exige a manutenção de uma postura crítica e aberta ao novo, comprometida com a democracia e os direitos humanos (SANTOS, 2013), em consonância com o progresso científico e com a disposição de revisar e ampliar as compreensões sobre os fenômenos espirituais à luz de novas evidências, incluindo as ciências humanas, as psicologias transpessoais e a psicanálise como campos de enriquecimento para uma nova hermenêutica do espiritismo. É Kardec que, ao rejeitar a sacralização dogmática de suas próprias formulações, se alinha a uma tradição filosófica que reconhece a incompletude do saber e a necessidade de um conhecimento sempre em movimento, disponível para novas descobertas e interpretações. É esse espírito que precisa ser resgatado.

Penso que é assim que poderemos renovar nossa compreensão dos fenômenos medianímicos que, talvez, sejam expressões de uma busca de dar um nó, um sentido, para aquilo que escapa — o que Lacan chamou de Real —, ou seja, o que é impossível de ser totalmente simbolizado ou explicado pela linguagem. Para o psicanalista francês Jacques Lacan (1901-1981), o Real é aquilo que insiste e retorna como um ponto de ruptura, uma dimensão da experiência humana que não pode ser traduzida inteiramente em palavras ou representações. Os fenômenos medianímicos, nesse sentido, podem ser compreendidos como tentativas de lidar com esse indizível, com aquilo que escapa ao controle racional duro e que marca as falhas do saber científico e do discurso organizado.

No ensino de Lacan, ele propõe a noção de RSI (Real, Simbólico e Imaginário) como três registros fundamentais da experiência psíquica. O Simbólico é o campo da linguagem e das leis que estruturam nossa relação com o mundo; o Imaginário refere-se ao campo das imagens, das identificações e da relação com o próprio corpo e com os outros; já o Real é aquilo que escapa a essa estrutura, aquilo que não pode ser simbolizado ou controlado. Para que um sujeito mantenha um razoável equilíbrio psíquico, uma dada equação pessoal, esses três registros precisam estar “enlaçados” de forma funcional. Quando esse laço se desfaz ou se fragiliza, surgem angústias e sintomas, em grave ruptura da experiência subjetiva.

É nesse ponto que entra o conceito de sinthome, um termo lacaniano que designa uma solução singular que cada sujeito encontra para sustentar o próprio laço social e psíquico. O sinthome é aquilo que permite ao sujeito lidar com o Real sem se desestruturar completamente. Os fenômenos espíritas ou medianímicos, vistos por esse prisma, podem funcionar como formas de estabilização subjetiva, permitindo que o médium (e também quem busca mensagens e orientações dos espíritos) encontre um sentido para experiências que, de outra forma, seriam insuportáveis ou desorganizadoras de sua psique. Mais do que consolo diante da morte ou lições de virtude, essas experiências podem ser estratégias psíquicas para dar conta daquele Mistério Profundo (vulgarmente chamado de Deus ou Espíritos) e de conteúdos que não encontram lugar no paradigma eurocêntrico de ciências naturais.

Dessa forma, investigar os fenômenos medianímicos com uma abordagem interseccional e transdisciplinar não é apenas um compromisso com o método científico — entendido aqui em sentido alargado, plural e crítico —, mas também um reconhecimento da complexidade das experiências humanas e transpessoais. Abrir esse espaço significa acolher procedimentos e perguntas vindos da psicanálise, das ciências sociais, da filosofia da consciência e das práticas clínicas, sem reduzir as vivências mediúnicas a meros objetos de laboratório nem tomá-las automaticamente por revelações infalíveis.

Se os Espíritos, como propõe a tradição espírita, são seres humanos sem o corpo físico tal como o conhecemos, então eles devem ser investigados, em primeiro lugar, como fenômenos humanos: sujeitos de linguagem, inscritos na cultura, na ética e na história. Dilthey chamava as formas de conhecimento que lidam com o espírito humano de “ciências do espírito” por uma razão: porque esses objetos não se deixam aprisionar pelas metodologias exclusivas das ciências naturais. Kardec já havia percebido isso. Então, só um diálogo sincero entre esses campos nos permitirá compreender como as manifestações medianímicas se articulam com sofrimento, identidade, laços sociais e busca de sentido.

Resta a pergunta prática: teremos coragem e generosidade epistemológica para construir esse campo dialógico entre saberes, isto é, um campo que seja rigoroso, crítico e, ao mesmo tempo, sensível às dimensões subjetivas e simbólicas do fenômeno medianímico?

Marcio Sales Saraiva

REFERÊNCIAS

HUME, D. (2016). Diálogos sobre a religião natural. Salvador: EdUFBA.

KARDEC, A. (2004). O livro dos médiuns: guia dos médiuns e dos evocadores (Tradução de Renata Barboza da Silva e Simone T. Nakamura Bele da Silva). São Paulo: Petit.

RORTY, R. (1994). A filosofia e o espelho da natureza. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.

SANTOS, B. d. (2013). Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos. São Paulo: Cortez.

SANTOS, B. d., & MENESES, M. P. (2009). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina.

VATTIMO, G. (2018). Adeus à verdade. Petrópolis: Vozes.

Marcio Sales Saraiva é escrevinhador, doutor em psicossociologia (UFRJ) e membro do Corpo Freudiano – Escola de Psicanálise (RJ). É coordenador do Centro Espírita Herculano Pires (CEHP) e diretor de estudos espíritas do Grupo Espírita Discípulos de Francisco de Paula (GEDFPA).

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