O que é ser espírita? Ainda é válido nos dizermos espíritas?

Kardec Denis Herculano

Nesses dias, um amigo me disse mais ou menos o seguinte: como é difícil ser espírita – quando encontro um espírita, ele me fala de coisas que não são espíritas para mim. Quando encontro um não espírita, também fala de um Espiritismo que não acho que seja Espiritismo.

Outro grande amigo agora me diz que não é mais espírita, mas Espírito, embora continue concordando com todos os princípios propostos pelo Espiritismo. Certo, mas que filosofia lhe ensinou que é Espírito imortal, com destino à perfeição?

Também soube recentemente de uma pessoa que se dizia espírita, que passou a fazer críticas – algumas bem pertinentes ao movimento espírita – e agora se afirma não mais espírita, o que seria do seu pleno direito, mas assumiu a missão pessoal de querer destruir tudo o que é espírita.

Afinal, o que está acontecendo?

Por essas e por outras que resolvi aqui tecer algumas reflexões sobre o que é ser espírita.

De fato, desde que o Espiritismo chegou ao Brasil e nos tornarmos o país mais espírita do mundo – quer dizer, o país onde mais gente se declara espírita e onde, portanto, o Espiritismo ganhou uma representatividade social – aquele Espiritismo de Kardec, fundado no século XIX foi se desbotando cada vez mais, fazendo sincretismos, incorporando práticas e conceitos, comportamentos e visões, que certamente estão longe do que Kardec pretendia.

É claro que nenhum movimento, seja filosófico, religioso ou mesmo político, se mantém estagnado no tempo, sem adaptar-se historicamente, sem agregar elementos culturais dos países ou das sociedades em que vierem a se instalar, sem abrir-se para novas reflexões, diante de outros contextos. Não poderíamos, portanto, pensar o Espiritismo por exemplo com as cores etnocentristas, de que há ressonâncias nas obras de Kardec, nem com as perspectivas sociais e históricas do século XIX.

Outra coisa, de 150 anos para cá, o planeta se modificou radicalmente. Somos hoje defrontados por problemas muito mais complexos do que na época de Kardec, que viveu num mundo sem bomba atômica, antes do holocausto, sem redes sociais, sem computadores e satélites e sem todos os desajustes humanos que povoam a sociedade do século XXI.

Mas se valorizamos a contribuição de Kardec, se ela ainda faz sentido para nós, se nos identificamos com as luzes que acendeu, precisamos centrar no que é atemporal, no que é essencial no Espiritismo, e de posse desse roteiro, desdobrarmos algo consistente para oferecer às profundas questões de nosso século.

O que se vê, porém, são espíritas despreparados para essa tarefa, ou porque se apegam à letra de Kardec, de maneira ortodoxa, ou porque procuram agregar ao Espiritismo apetrechos sem consistência, como autoajuda barata, psicologismo superficial, práticas quase mágicas, misticismos que não resistem a uma análise mais racional… Já tratei aqui nesse blog desses adendos indesejáveis que muitos querem acrescentar ao Espiritismo a ponto de desfigurá-lo.

Ora, por causa da leitura ortodoxa de alguns, por causa na miscelânea mística de outros, por causa do farisaísmo de alguns, por causa da comercialização de outros – há espíritas que se constrangem em continuar se dizendo espíritas. Há outros que preferem buscar caminhos diferentes, para não se sentirem vinculados a um rótulo com tantas contradições.

Mas eis que chamo a atenção para nosso dever de socorrer o Espiritismo dos espíritas, invocando Kardec, Léon Denis, Herculano Pires e tantos outros, que deram contribuições preciosas que não podemos abandonar ao sabor da irresponsabilidade de alguns, da vaidade de outros e da traição de muitos.

O que seria então aquilo que nos define como espíritas?

Ser espírita significa ser sectário? Nunca! O Espiritismo é universal, considerando que há verdades em toda parte. Por isso dialoga com todos os caminhos espirituais, sem perder a sua especificidade.

Mas que especificidade é essa?

Somos reencarnacionistas – há muitas religiões, filosofias e doutrinas que o são. Mas o Espiritismo propõe a reencarnação como processo educativo, de evolução – de individualidades que para sempre permanecerão individualidades. Isso é único.

Somos praticantes da mediunidade – há muitas religiões e práticas que lidam com entidades invisíveis. Mas o Espiritismo tem uma proposta de controle, racionalidade e ética para essa prática, que nenhuma corrente tem. A abordagem do Livro dos Médiuns, como um manual de como lidar com a mediunidade é única. O problema é que a maioria dos espíritas não lê, não estuda, não aplica e só se complica em relação à prática mediúnica, com todo o cortejo de mistificações, autoilusões, vaidades, que vemos por aí.

Somos adeptos da ética cristã, que se afina perfeitamente com a ética budista, com a ética hindu, com a ética judaica – porque o que há de denominador comum entre as tradições espirituais, é sobretudo o caminho do bem, que não pode ser diferente. Mas no Espiritismo, essa ética deveria vir entrelaçada a uma crítica social – e nem sempre vem na maioria dos espíritas conservadores do Brasil, mas ela está presente no Livro dos Espíritos, por exemplo, como já demonstrei num artigo, com Alessandro Bigheto. Porque a caridade tem que ser eficaz para acabar com as estruturas sociais que provocam a miséria, a pobreza e a fome e não pode apenas se interessar em distribuir mantimentos e lavar as mãos diante das grandes injustiças do mundo. Assim como o amor ao próximo não pode ser apenas um bonito discurso e não nos importarmos com os negros que são assassinados nas periferias, com as prisões lotadas e desumanas, com as mulheres violentadas e desrespeitadas, com os homossexuais perseguidos ou com as crianças, vítimas da fome, da violência e do abandono.

Os espíritas têm o dever moral de se preocupar com todas essas questões e apresentar soluções para elas, que não sejam apenas medidas paliativas de assistencialismo piegas.

Além desses três eixos fundamentais e únicos, que caracterizam o Espiritismo (e se você se identifica com eles, pode tranquilamente se dizer espírita, mesmo não frequentando nenhuma instituição espírita!) eu diria que outro aspecto que devemos evocar e preservar é a racionalidade (à moda ocidental, portanto enraizada na tradição grega) e a cientificidade (à moda ocidental também). A racionalidade nos remete sempre à possibilidade da crítica, à não submissão da razão individual a qualquer tipo de autoridade, médium ou guru, a qualquer dogma, a qualquer instituição. A cientificidade é a manutenção de um diálogo com as evidências acumuladas pela pesquisa, pela observação, mantendo-nos com um pé nas universidades, com o espírito alerta para o progresso das investigações que tenham relação com os temas da espiritualidade.

E por fim, o Espiritismo é atualmente a única forma de espiritualidade, que podemos considerar assumidamente pedagógica. Não propõe nem a salvação, como na interpretação tradicional do cristianismo, nem a iluminação, como em doutrinas orientais, mas a evolução pela educação individual e coletiva.

Diante de tudo isso, deixo aqui minha convocação àqueles que entendem e se sintam identificados com tudo o que foi dito – que considero que seja o essencial no Espiritismo: não abandonem o barco, não fujam ao testemunho e não se envergonhem de se dizer espíritas, apesar de tantos que se dizem espíritas e passam longe da proposta de Kardec! Façamos a nossa parte de salvar o Espiritismo dos mais ou menos espíritas, tornando-o um caminho sólido para os hesitantes peregrinos de nosso século!

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18 respostas para O que é ser espírita? Ainda é válido nos dizermos espíritas?

  1. Claudia Gelernter disse:

    Muito bom texto, querida! Penso igual, em todas as vírgulas e parágrafos!

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  2. Tiago disse:

    Religiosos querem um Espiritismo sem Kardec.
    Conservadores querem um Espiritismo sem Jesus.
    Misticos querem um Espiritismo sem razão.

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  3. Cláudio Bueno da Silva disse:

    Como sempre, Dora, você aborda as questões indo no ponto certo, no alvo. Sua expressão “mais ou menos espíritas” é perfeita. Esse é, sem dúvida, um drama que vivemos hoje, mais que antes, no meio espírita. Nessa hora de testemunho, de “segurar o rojão”, serviremos a quem, mesmo?

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  4. “Mas eis que chamo a atenção para nosso dever de socorrer o Espiritismo dos espíritas”. Espiritismo para mim é profundamente progressista, como Kardec foi, como Jesus foi. E nesse progressismo, ser destemido, analisar a fundo as questões e, doa a quem doer, confrontar a fé com a razão, encontrando nos três eixos fundamentais a razão que nos console. O Movimento Espírita, por conta dos Espíritas, se não se cuidar, vai entrar por um viés fanatizado, acrítico e comercialmente palatável muito parecido com o que tem sido conduzido por Silas Malafaia, Edir Macedo, IURD e as neopentecostais como um todo, que indicam candidatos, dizem em quem se deve votar e abomina qualquer progresso e discussão, elegendo líderes e ícones inatacáveis e idolatrados (ungidos?). Cuidemos, essa questão está na nossa alma, já fomos assim, fanáticos, temos essa tendência no nosso atavismo espiritual. Sejamos mais abertos, mais críticos, mais conectados com direitos sociais, direitos humanos, ciências, juventude, incentivemos os ciclos de debates, as palestras mais instrutivas e consoladoras e menos cheias de ranços moralistas, réstias ainda da opinião pessoal do espírito encarnado (ou não), pois, como disse Kardec: “Um dos primeiros resultados das minhas observações foi que os Espíritos, não sendo senão as almas dos homens, não tinham nem a soberana sabedoria, nem a soberana ciência; que o seu saber era limitado ao grau do seu adiantamento, e que a sua opinião não tinha senão o valor de uma opinião pessoal. Esta verdade, reconhecida desde o começo, evitou-me o grave escolho de crer na sua infalibilidade e preservou-me de formular teorias prematuras sobre a opinião de um só ou de alguns.”

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  5. Marcelly disse:

    Ser espírita é um desafio diário, constante, pois a doutrina nos traz a consciência de que somos responsáveis por nossas escolhas e dos seus resultados não iremos fugir. Como tudo que sofre as interferências humanas, está sujeita as nossas vaidades, aos jogos de poder e a ignorância. Ainda assim é belo buscar ser espírita em sua essência que nada mais é que Amar sem medida, usando o bom senso e a razão para não tropeçar nas armadilhas da inverdade e do desamor. Ser espírita exige coragem, desapego e boa vontade para aprender a ser melhor todos os dias. Obrigada Dora por sua perseverança. Como espírita você nos inspira. Vamos em frente!

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  6. Só posso dizer nesse momento: Como é bom não me sentir sozinha!! Muito obrigada, Dora.

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  7. Rita Andrade disse:

    Que lindo texto. Acho que esse debate deve ser levado pelo pessoal da Associação. Sou secretáriabdo 37 ceu, em São Gonçalo, Rio de Janeiro e sou do GENOVA – Grupo Espirita Nova Aurora. Grupo criado em cima de críticas muito semelhantes. Meu número 97358-3656

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  8. Os textos da Dora dão um sopro de esperança e ânimo na gente. Admiração!

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  9. Paulo cesar muller enes disse:

    Excelente reflexao e comentario, nao vou entrar no merito se esta tudo certo ou errado, mas temos de nos pautar pela ponderabilidade, refexionar sobre tudo e todos, irmos alem dos limites do nosso pretenso conhecimento. Quanto a ser ou deixar de ser espirita, tenho que saber que a doutrina nos da ferramentas conscienciais talvez nunca ministradas e a disposicao para nossa caminhada evolutiva. O que muitos ainda nao entenderam e que a Doutrina Espirita e nosso guia condutor ao porto semi-final que esta nos proposto pela criacao, quando la nao serei mais espirita, catolico, budista, umbandista, evangelico, judeu, muculmano, ou qualquer outra forma de expressao materializada no planeta, mas ao chegar ao final desta etapa, serei filho da criacao em comunhao com ela (religiao: religar), religado ao Divino e a sua essencia. Ai sim deixarei de ser Espirita, para ser o que a Doutrina me sustentou a me tornar, simplesmente Filho do Criador em toda sua extensao de significado, “Amor”.

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  10. Sandra Faria Oliveira disse:

    Me identifico com suas palavras.

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  11. Marcos Macedo disse:

    Gostei muito da visão global de como se pode ser um verdadeiro espírita. Basta ter foco no ser humano e não em si somente. Basta não ser alienado nem um preguiçoso espiritual! É na verdade um caminho de fé e constante ligação com o Cristo!

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  12. Sergio Reis disse:

    Não há espiritismo sem a prática do trabalho; não há espírita sem uma reformulação de hábitos à luz dos ensinos de Cristo.

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  14. espiritismo cultura disse:

    Sou português, tenho-me dedicado a estudar Allan Kardec em Francês e já há muito venho seguindo os percursos trilhados por Dora Incontri e por outros brasileiros progressistas e esclarecidos.
    Acho que esta plataforma que está a surgir (e que, sinceramente, não explorei ainda na sua totalidade) tem algumas características muito importantes que poderão servir para libertar o espiritismo das grossas cadeias de pensamentos retrógrados e de alienações ridículas.
    Não sou espírita de centro e considero, de há muito, que todas as estruturas federativas e seus cúmplices/serventuários cometem crimes gravíssimos de ocultação da verdade e conservam as magníficas potencialidades do “diálogo entre humanidades” sob a alçada da sua ambição egoísta e obscurantista.
    Continuo a pensar que a Filosofia Espiritualista vale todo o trabalho de estudo e divulgação que possa ser feito, e que é essencial permanecermos como agentes independentes de pensamento critico. Abraço e os melhores votos a todos e os mais respeitosos cumprimentos a Dora Incontri

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  16. Elda Pontes disse:

    Gostei da reflexão 👏👏

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